O Brasil concentra a maioria dos povos isolados do mundo. Mas eles não estão apenas aqui. Além dos outros países amazônicos, a Ásia também preserva alguns desses grupos indígenas que não têm contato com o resto do mundo.

Um deles fica em uma ilha na Índia, que, inclusive, tem uma lei, de 1956, dedicada a manter o isolamento. É uma medida para preservar a importância antropológica desse povo - e para proteger fisicamente as pessoas, tanto as isoladas quanto as outras.

Ao longo dos séculos, os habitantes da ilha proibida, conhecidos pelos pesquisadores como sentineleses, repeliram as tentativas de contato feitas por exploradores, colonizadores, missionários, pescadores e outros estrangeiros, cada um com seus respectivos interesses. O isolamento se manteve a duras penas.

“Mas os riscos aumentaram. Em 2025, eles têm que lidar com um novo tipo de invasor indesejado: influencers.”

Na semana passada, um youtuber americano foi preso após fazer uma incursão na ilha para tentar contato com os sentineleses. Ele ofereceu um coco e uma lata de refrigerante, e a gracinha pode lhe render alguns anos de cadeia.

Que lugar é esse?

Sentinela do Norte é uma das cerca de 200 ilhas que compõem o arquipélago das Andaman, que pertence à Índia mas está mais próximo do litoral de Mianmar. É uma pequena joia intocada no Golfo de Bengala, com cerca de 60 quilômetros quadrados e habitada exclusivamente pelos sentineleses.

Trata-se de um povo indígena ameaçado. A população é mínima, e na falta de um censo mais criterioso as estimativas flutuam entre 15 e 500 indivíduos.

São caçadores-coletores vivendo nas mesmas condições, no mesmo lugar, há milhares de anos. Sentinela do Norte é um pedaço de uma Terra que não existe mais.

Para essas pessoas, as guerras, revoluções e inovações tecnológicas que forjaram o resto do mundo nos últimos milênios são irrelevantes. O mais importante é que elas não sabem o que são uma série de doenças - e é importante que continue assim.

Varíola, sarampo, tifo, peste bubônica e outras doenças infecciosas eram comuns na Europa, onde as pessoas criaram anticorpos ao longo das gerações. Mas não existiam em outras partes do planeta.

A varíola dizimou os incas e os astecas, matando imperadores, sacerdotes, soldados, artesãs e camponesas. A imensa maioria das populações nativas das Américas não morreu por causa da violência dos invasores europeus: 95% sucumbiram às doenças que eles trouxeram, lembra Jared Diamond no clássico “Armas, Germes e Aço”.

A humanidade sabe, há tempos, que doenças simples para quem já teve contato com elas podem ser mortais para outros povos. Uma gripezinha pode levar uma vila inteira para a cova.

Os sentineleses descobriram isso no século 19. Em 1880, uma expedição liderada por Maurice Vidal Portman, administrador colonial de Port Blair, capital das Ilhas Andaman, chegou a Sentinela do Norte.

Portman ficaria conhecido por sua documentação dos povos indígenas de Andaman. Era esse o motivo de sua viagem, estudar os costumes dos nativos.

Após alguns dias de investigação, o grupo decidiu levar seis sentineleses a Port Blair. Segundo anotações, os indigenas adoeceram rapidamente. O homem mais velho e sua esposa morreram, então os quatro sobreviventes, crianças, foram enviados de volta para casa.

Por essas e outras, a lei indiana delimitou a área que circunda a ilha como uma zona proibida. Ninguém pode chegar a menos de cinco milhas náuticas (9,2 km) de distância. A guarda costeira monitora a área, a fim de evitar pesca, caça, invasão e outras atividades ilegais.

É uma medida também para proteger os desavisados. Quem se aproxima de barco ou helicóptero é recebido por flechadas, num surpreendente vislumbre da Idade da Pedra.

Em 2018, houve um afrouxamento na proibição: 29 ilhas foram retiradas da lista para promover o turismo nas Ilhas Andaman e Nicobar. No caso de Sentinela do Norte, o relaxamento serviria para facilitar o trabalho de antropólogos e pesquisadores, desde que previamente autorizados.

Foi uma tentativa de retomada dos trabalhos científicos na ilha. Em 1970, pesquisadores levaram peixes, cocos e bananas, mas foram recebidos com a ameaça de flechadas. Outras tentativas, nos anos seguintes, também foram infrutíferas.

O primeiro contato pacífico e produtivo aconteceu em 1991, quando membros do serviço de pesquisa antropológica da Índia conseguiram presentear os sentineleses e estabelecer alguns encontros.

Mas eles jamais conseguiram algum progresso em compreender a língua dos locais, que os advertiam a não ficar muito tempo na ilha. Até que as visitas foram encerradas.

Desde então, houve alguns encontros não científicos, com desdobramentos fatais. Em 2006, dois pescadores que se aproximaram demais da praia foram mortos. Em 2018, um missionário evangélico americano teve o mesmo destino. Em 2022, três pescadores não voltaram para casa - o barco deles foi avistado, abandonado, na praia de Sentinela do Norte.

“Em 2025, por pouco não presenciamos o encontro bizarro dessa população do pré-neolítico com o puro suco dos nossos tempos. Mas bem que o youtuber tentou.”

Likes vs. flechas

Na semana passada, Mykhailo Viktorovych Polyakov, 24 anos, partiu sozinho da ilha de Andaman do Sul em um bote inflável rumo a Sentinela do Norte. Ele levava uma câmera GoPro, um coco e uma lata de Coca Diet.

Aproximou-se do nordeste da ilha na manhã de 29 de março. Com binóculos, tentou avistar alguém, sem sucesso. Então, desembarcou, colheu amostras de areia, deixou seus presentinhos, gravou um vídeo e foi embora.

No dia 31, a polícia de Port Blair o prendeu por desrespeitar a lei local. As imagens em sua câmera e os registros do GPS eram provas mais que suficientes. Segundo as autoridades, Polyakov tinha um plano meticuloso e não se mostrou nada intimidado ao ser detido.

Ele estudou o melhor ponto de partida para chegar à ilha e analisou condições marítimas. Mesmo sem ter conseguido estabelecer contato, insistiu, de volta ao barco, em chamar a atenção dos sentineleses com um apito estridente.

Polyakov será julgado e poderá pegar até cinco anos de cadeia. A polícia disse ainda que ele tentou fazer outras viagens a Sentinela do Norte. Em outubro do ano passado, foi impedido pelo pessoal do hotel onde estava hospedado. Em janeiro, chegou a uma outra ilha, igualmente proibida.

A ONG Survival International, que luta pelos direitos de povos indígenas, resumiu em duas palavras a aventura de Polyakov: “imprudente e idiota”.

“As ações dessa pessoa não só colocaram em risco sua própria vida, como a de todos os sentineleses”, declarou a diretora do grupo, Caroline Pearce, em um comunicado. “Já é de conhecimento geral que povos isolados não têm imunidade a doenças comuns, como gripe ou sarampo, que poderiam exterminá-los completamente.”

Para ela, o fato de alguém chegar tão facilmente à ilha é problemático. “As autoridades indianas têm a responsabilidade legal de garantir que os sentineleses estejam seguros de missionários, influenciadores, pessoas que pescam ilegalmente em suas águas e qualquer outra pessoa que tente fazer contato com eles”, completou.

Entrei no canal de Polyakov para saber mais sobre seus vídeos. A página, chamada “Neo-Orientalist”, tem menos de 3 mil seguidores.

A descrição do canal se resume a duas palavras enigmáticas: “PLVS VLTRA”. Trata-se da expressão latina “plus ultra” (“cada vez mais longe”). A frase é o lema nacional da Espanha e está presente no brasão de armas do país.

Isso porque “plus ultra” era o lema de Carlos 5º, o homem mais poderoso do mundo no começo do século 16. Imperador Romano-Germânico e rei da Espanha (como Carlos 1º), ele governava boa parte da Europa Ocidental, além das possessões espanholas no norte da África e as recém-conquistadas nas Américas.

O cabeçalho e a imagem de perfil de Polyakov mostram o youtuber com os traços inconfundíveis de Hergé. Apesar de Tintin ser um personagem adorável, algumas das histórias em quadrinhos do repórter belga envelheceram mal e requerem uma contextualização para situar o racismo da época em que foram criadas.

Bem, então quais seriam as visões de um youtuber americano que decide chamar seu canal de “neo-orientalista”, com o mote de um imperador colonialista e a identidade visual de um personagem que, à luz dos dias atuais, tem certas histórias racistas? Assista e me diga.

Nada contra influenciadores, até tenho amigos que são. Mas esses que topam tudo por audiência comprometem o trabalho de um monte de profissionais sérios, além de colaborar com a mancha crescente de descrédito sobre sua própria classe.

No caso específico de Polyakov, que também fez vídeos supostamente no “Afeganistão sob regime Talibã”, posando com metralhadoras, seus vídeos em Sentinela do Norte seriam mais problemáticos ainda. Numa brincadeira inconsequente, ele poderia provocar um assassinato em massa.

Não que eu não entenda o fascínio. Como o “Times of India” definiu, Sentinela do Norte permanece um paradoxo:

“Um lugar de profundo mistério e cuja beleza é de tirar o fôlego. Mas onde o preço da curiosidade pode ser a morte. Sua proibição é uma prova de um equilíbrio delicado: proteger um povo frágil, honrar sua feroz independência e preservar uma parte da herança ancestral da Terra.”


Em tempo: as Ilhas Andaman têm praias lindas, bem estruturadas e que não lotam. Dá para visitá-las, conhecer e valorizar a cultura local sem transgredir nenhuma lei nem colocar a própria vida - e a existência de um povo - em risco.

Minha frase favorita da matéria interfira foi:

Nada contra influenciadores, até tenho amigos que são.

  • nossaquesapao
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    3
    ·
    2 days ago

    Imagina só se nossa sociedade, com todo esse complexo de superioridade, entra em colapso e praticamente desaparece, enquanto eles continuam firmes e fortes, sem nem saber o que se passou, porque toda nossa sociedade, nossas ambições e aspirações não são sequer importantes fora do nosso círculo. Seria no mínimo uma grande ironia da vida.