A medida que põe fim ao aborto legal no Brasil viveu um novo passo na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados nesta quarta-feira (13). O texto, que tramita como Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 164/2012, contou com a leitura do parecer da relatora, a deputada bolsonarista Chris Tonietto (PL-RJ), que manifestou posição favorável à PEC. O relatório não chegou a ser votado porque foi alvo de um pedido de vista conjunta, cujo prazo é de duas sessões plenárias. Com isso, a proposta tende a retornar à pauta do colegiado na próxima semana.
Ao defender a admissibilidade jurídica da PEC, a relatora da proposta disse não haver “quaisquer óbices constitucionais para a regular tramitação da referida proposição”. A fase de apreciação do texto pela CCJ não inclui a análise de mérito do texto, ficando restrita à questão jurídica. Antes do pedido de vista, parlamentares críticos à PEC tentaram obstruir a votação, mas terminaram vencidos. Um requerimento de retirada da proposta de pauta terminou com 34 votos contrários e apenas 13 favoráveis, o que ajudou o texto a avançar.
Partidos como PL, União Brasil, PSD, Podemos e Novo defenderam que a discussão seguisse em frente, enquanto PT, PCdoB, PV, Psol, Rede e a liderança do governo defenderam o adiamento. O placar ajuda a dar uma dimensão da atual correlação de forças em torno da PEC no colegiado: o texto, que tem sido duramente criticado por especialistas e segmentos populares, conta não só com a simpatia da ala mais reacionária da Câmara, mas também com o apoio de membros do centrão, grupo que engloba nomes da direita liberal.
Debate
Durante a sessão desta quarta, a PEC mais uma vez mobilizou os antagonismos entre parlamentares da esquerda e membros do campo da direita. Diferentes deputados se sucederam nas críticas ao texto, que modifica a Constituição para prever “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”. Especialistas em legislação apontam que, na prática, o texto criminaliza e inviabiliza os casos de aborto atualmente autorizados no país, que são aqueles nos quais há fetos anencéfalos, risco de vida para a gestante ou gravidez resultante de estupro.
“Esse debate remonta a 1986. Esse debate foi feito na Constituinte e foi recusado esse texto para o artigo 5º da Constituição. Por quê? Porque existem, objetivamente, realidades concretas que necessitam a interrupção da gravidez. Eu não estou nem discutindo legalização, descriminalização [da prática], ampliação do direito ao aborto. Estou discutindo aqui o que temos desde 1940, que são o aborto nos casos de estupro e risco de risco para a mãe”, argumentou a deputada Jandira Feghali (PcdoB-RJ), que discursou na comissão em nome da Federação PT-PCdoB-PV.
Esta não é a primeira vez que a Câmara vira palco de disputas incendiárias por conta do tema do aborto. Em junho deste ano, em aliança com lideranças da bancada evangélica, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), conseguiu aprovar a tramitação de urgência para o projeto de lei (PL) 1904/2024. De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e aliados, o texto modifica o Código Penal de 1940 para equiparar o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio. A proposta recebeu uma avalanche de críticas de diversos setores sociais e terminou com a análise de mérito sendo adiada por conta da ampla rejeição ao tema.
“Fico me perguntando por que essa pauta volta. Parece que há uma sociopatia que se reflete aqui dentro. É uma pauta, me parece, perseguida porque ninguém se conforma que exista esse direito [ao aborto legal]. Fico me perguntando o que faço com as meninas estupradas pelos seus pais biológicos, o que faço com as adolescentes estupradas pelos seus familiares. Eu faço o quê? Levo a gravidez adiante, pra ter um filho e um neto ao mesmo tempo? Como é que nós tratamos esses temas na realidade brasileira? Por isso essa PEC é chamada de ‘PEC do Estuprador’, porque é mesmo: facilita o estupro, não pune, não possibilita à mulher que ela se livre desse tipo de violência”, reforçou Jandira.
Erika Kokay (PT-DF) chamou a atenção para o impacto que a PEC pode ter na vida das mulheres brasileiras em geral. “A sociedade inteira viu a reação em todos os cantos do país quando se tentou limitar o direito à interrupção legal da gravidez [com o PL 1904], e agora se quer extinguir. É de uma profunda crueldade. Esta PEC avança inclusive na pílula do dia seguinte, impede pesquisas com células-tronco, a inseminação artificial, a fertilização in vitro. Ela cerceia os direitos inclusive das mulheres que querem ser mães através de inseminação artificial, mas não é só isso. O que se quer aqui é obrigar as mulheres a terem um vínculo permanente com um estuprador, por isso que é a PEC do Estuprador.”
O deputado Bacelar (PV-BA) sublinhou que o fato de a CCJ priorizar a colocação em pauta de textos como a PEC 164/2012 demonstra que o colegiado estaria atualmente em desacordo com os anseios da população brasileira – em junho deste ano, no auge dos debates sobre o PL 1904, o Datafolha mostrou que 66% dos brasileiros rejeitavam a proposta. “É com preocupação e indignação que eu assisto a dissociação da pauta da CCJ com os interesses do povo brasileiro. Nós estamos hoje aqui sendo forçados a discutir a PEC dos estupradores, e o Brasil quer discutir o fim da escala de trabalho 6x1”, disse, ao destacar a campanha popular pela redução da jornada de trabalho no país.
Apresentada em 2012, a PEC 164 é de autoria dos ex-deputados João Campos (PSDB-GO) e Eduardo Cunha (MDB-RJ), este último cassado em 2016, quando estava na presidência da Câmara. Caso seja aprovado na CCJ, o texto deve ser encaminhado para análise de mérito por uma comissão especial. Na sequência, precisa de dois turnos de votação no plenário, com apoio de pelo menos 308 parlamentares, para que consiga prosperar e ser encaminhado ao Senado, onde viverá mais um ciclo de votações.
Edição: Thalita Pires