O apagão que deixou milhões de clientes da concessionária Enel sem energia em São Paulo na semana passada reforçou a necessidade da participação de uma empresa federal no setor elétrico nacional. Criou também a oportunidade política para que isso passe a ser avaliado por autoridades no país – algo que hoje é pouco debatido.
A tempestade no último dia 11 ocasionou mais uma crise de abastecimento de energia na capital paulista. Foi a terceira em menos de um ano. Levantou também discussões sobre o que fazer com a Enel, empresa italiana que assumiu em 2018 o controle da distribuição de energia na capital paulista e, desde então, acumula problemas.
O ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), passaram a defender que a Enel tenha sua concessão cassada. Ou seja, que ela perca o direito de vender eletricidade à população.
Clarice Ferraz, economista e diretora do Instituto Ilumina, afirmou que essa cassação deve ser considerada. Ela, porém, provavelmente não resolveria os problemas de São Paulo.
Isso porque, sem Enel, uma outra empresa seria contratada para assumir a distribuição de energia. Das possíveis interessadas no contrato, todas seriam privadas, geridas de forma parecida com a Enel e que, portanto, apresentariam problemas semelhantes.
Clarice lembrou que não há hoje no Brasil uma empresa estatal com capacidade de assumir uma concessão como a da Enel em São Paulo. Viabilizar a criação dessa empresa poderia ser o início de uma mudança estrutural no setor elétrico nacional.
“Poderia ser criada uma experiência inovadora com o caso Enel”, disse a especialista, ao Brasil de Fato. “Poderia ser construída uma inteligência estatal para a distribuidora de energia do futuro do país.”
Ikaro Chaves, engenheiro eletricista e ex-funcionário do sistema Eletrobras, já havia falado sobre essa alternativa estatal em entrevista ao Bdf na semana passada. Para ele, uma empresa elétrica federal poderia servir como uma concorrente de peso para balizar o mercado nacional de distribuição de energia no país.
Segundo ele, apagões são cada vez mais frequentes não apenas em São Paulo, mas ocorrem também em áreas atendidas por outras companhias.
Atualmente, no entanto, o governo pouco pode fazer para pressionar essas empresas para que elas melhorem os seus serviços. Uma concorrente estatal mudaria esse cenário.
“Se o Brasil tivesse uma empresa federal de distribuição, ela poderia servir de referência para as outras. Como uma ‘sombra’ para elas e uma ‘ameaça’”, explicou. “Se a concessão não estiver funcionando num local, essa empresa estaria pronta para assumir o contrato, o que criaria uma pressão econômica.”
Eletrobras faz falta
Chaves trabalhou na Eletrobras até ela ser privatizada no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele lembrou que a estatal federal tinha esse papel de grande concorrente do setor privado na definição de tarifa de energia no Brasil. Enquanto empresas ofereciam em leilões energia a um preço mais alto, a estatal apresentava propostas mais baixas.
Chaves lembrou que a Eletrobras também mantinha em seus quadros uma capacidade técnica para socorrer o setor elétrico nacional em graves ocorrências. Em 2020, quando houve um apagão de 22 dias atingiu o Amapá após uma explosão numa subestação, foram funcionários da estatal que socorreram a população. Hoje, essa capacidade não existe.
Em São Paulo, após a tempestade, o governo federal foi obrigado a pedir ajuda de concessionárias de energia que atuam em outras cidades para ajudar a Enel. Três companhias atenderam o pedido.
O ministro Silveira agradeceu a ajuda privada. No entanto, deixou claro que a falta de uma Eletrobras sob o controle do Estado deixa o Brasil em situação vulnerável. “A Eletrobras era o último braço do setor elétrico que o ministro de Minas energia tinha para socorrer inclusive brasileiros em momentos extremos”, afirmou ele.
Solução mineira
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) questiona no Supremo Tribunal Federal (STF) a lei que viabilizou a privatização da Eletrobras. A ideia do governo, no entanto, não é reverter a venda, mas sim ampliar o poder de voto do Estado na empresa.
Ao mesmo tempo, ele discute com o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), um acordo para que a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) seja transferida à União como parte do pagamento da dívida do estado. Nada disso, contudo, parece ter possibilidade de resolvido no curto prazo.
Concessões em xeque
Durante o mandato do presidente Lula, três contratos de concessão de energia perderão a validade: um do Espírito Santo e dois do Rio de Janeiro, sendo um deles com a Enel e outro com a Light. Cabe ao governo decidir se os contratos serão renovados.
Se Lula disputar a eleição em 2026 e for reeleito, seu governo também poderá decidir se renova ou não a concessão da Enel em São Paulo.
Para Chaves, essa janela de renovações cria a possibilidade para a busca por uma alternativa ao setor elétrico por uma nova estatal. Para ele, está claro hoje que os contratos de concessão com empresas privadas não deram certo. Cabe ao governo agir.
“Estamos vendo a falência do modelo do setor elétrico brasileiro gestado lá nos anos 90, quando começou o processo de privatização”, disse.
Edição: Thalita Pires