Uma ex-funcionária da Brasil Paralelo relatou, em entrevista exclusiva à Agência Pública, que foi vítima de assédio praticado por Guilherme Freire, ex-diretor da produtora. Apesar de o caso ter chegado à direção da empresa, Freire teria sido protegido e a denúncia, abafada. Ele só foi demitido meses depois, após pelo menos outros dois casos terem vindo à tona.

Catarina Torres, 21 anos, decidiu entrar no início de outubro deste ano com uma ação judicial por danos morais e materiais contra Freire depois de ter passado os últimos três anos sofrendo com efeitos do transtorno de estresse pós-traumático, ocasionado pelo trauma que ela descreve que viveu na Brasil Paralelo em 2021, quando tinha acabado de completar 18 anos. Ela possui laudos médicos e psicológicos que referendam os danos à sua saúde.

A Pública teve acesso a uma série de provas que ela anexou ao processo, contendo trocas de mensagens, áudios e vídeos de conversas com colegas que trabalharam com ela na Brasil Paralelo. As provas foram registradas no Verifact (plataforma que preserva provas digitais) e mostram que várias pessoas sabiam dos assédios, que outras mulheres também dizem ter sido vítimas, e que, quando os casos começaram a se amontoar, teria ocorrido pressão interna para que eles não vazassem. Essas provas não serão reproduzidas porque contêm dados dos interlocutores de Torres, que não ingressaram na Justiça e não quiseram prestar queixas para evitar retaliações.

A reportagem procurou Freire por meio dos seus advogados e também a Brasil Paralelo, mediante contatos de comunicação e também por um de seus sócios. Nenhum dos procurados respondeu até a publicação.

Duas trajetórias na Brasil Paralelo

Freire entrou na Brasil Paralelo em 2021, quando já era um conhecido influencer do campo conservador, com milhares de seguidores nas redes sociais. Ele ingressou como head (chefe) da BP Select, serviço de streaming da produtora, em abril de 2021. Em outubro daquele ano, acumulou o cargo de diretor de streaming e educação.

Em março de 2022, depois de já ter sido denunciado para a direção da empresa pelos assédios contra Torres, Freire ainda acumulou mais um cargo: o de showrunner de programas da produtora. As informações constam no LinkedIn do influenciador.

Já Torres tinha acabado de entrar na faculdade quando foi contratada pela Brasil Paralelo, em 20 de setembro de 2021, para trabalhar como gestora de comunidades, um cargo da área de marketing. Ela era fã dos documentários da produtora e se identificava com a sua visão católica e conservadora.

Para conseguir o cargo dos sonhos, Torres se mudou de Brasília para São Paulo sozinha e sem ajuda financeira dos pais. Na entrevista de emprego, foi indagada se conhecia a teoria das 12 camadas da personalidade humana do falecido guru Olavo de Carvalho (segundo ele, há 12 tipos de pessoas de acordo com os tipos de motivação). “Me disseram que eu não podia ser ‘quarta camada’, que significa ser uma pessoa emotiva, que se afeta com qualquer coisa. Isso me fez assumir uma postura durona. Eu era muito nova e queria que me respeitassem”, ela afirma.

Torres conta que os funcionários da Brasil Paralelo tinham o hábito de conversar sobre catolicismo e política durante o expediente. Quando ela também começou a falar sobre esses assuntos, percebeu que estava sendo julgada por causa da pouca idade. “As pessoas suspeitavam da minha conduta, estavam sempre me testando. Eu sentia que era vista como um objeto sexual. Era como se estivesse no meio de lobos”, diz.

O encontro com o então diretor da Brasil Paralelo

Ela relembra que, no segundo dia de trabalho, cruzou com Freire em um dos corredores da empresa. Ele teria reconhecido a novata, porque ela já tinha feito uma mentoria particular online com ele quando ainda estava no Ensino Médio. Freire costuma vender cursos, palestras e mentorias para ensinar História e Filosofia — na visão dele. Uma de suas alunas é Cristina Junqueira, uma das fundadoras do Nubank, que ganhou os jornais recentemente ao divulgar um evento da Brasil Paralelo, associando a imagem do banco à produtora. Ela fez um post no Instagram recomendando o curso de Freire para quem “quer investir em evoluir como pessoa”.

Ao reconhecer a ex-mentorada, o diretor a chamou para uma conversa reservada em sua sala — apesar de o trabalho dos dois não ter conexão direta. Lá, ele teria dito que tinha insights valiosos para ajudá-la em sua carreira. Querendo passar uma boa impressão e sabendo da posição de poder de Freire, Torres aceitou ouvir as dicas.

O diretor, então, começou uma “sessão de imposições moralistas”, nas palavras de Torres. As lições envolveriam opiniões sobre como uma mulher deveria se comportar e quais roupas poderia usar. Ele teria dito que mulheres deveriam ficar em casa e cuidar da família, e aconselhado que Torres evitasse interações com outros homens da empresa, porque eles poderiam “interpretar mal a sua gentileza”.

Ela conta que depois Freire passou a procurá-la frequentemente, apesar de os dois não trabalharem no mesmo andar — ela ficava no 15º e ele no 9º. Segundo ela, quando estava conversando com outras pessoas, ele fazia comentários sobre ela de modo vexatório. “Ele dizia em voz alta que eu não tinha conhecimento de quem eu era, que era melancólica, boba, imatura, que precisava de alguém para me guiar. Numa das vezes meu olho encheu de lágrima, mas eu não tinha coragem de falar nada”, diz.

As conversas reservadas e as reprimendas públicas foram se tornando cada vez mais frequentes, fazendo com que Torres se sentisse desconfortável. Ele repetia para a ex-funcionária que era importante mostrar trabalho, ser a primeira a chegar e a última a sair, e que ela precisava seguir as suas instruções se não quisesse ser demitida, segundo Torres.

Reunião fora do expediente

Em uma ocasião, segundo Torres, Freire pediu uma reunião com ela às 20h, quando já havia terminado o expediente, numa cabine reservada. “Ele falou que tinha um carinho diferente por mim porque tenho o nome de uma filha dele. Disse que queria me ajudar e que, se eu não obedecesse, iria ser mandada embora rápido”, afirma.

“Percebi que ele queria criar um clima romântico, como se estivesse tentando me salvar”, disse. De acordo com Torres, nessa reunião Freire tentou pegar a mão dela, que se esquivou. “Por muito tempo eu me questionei se tinha entendido certo e se fiz algo para provocar aquilo. Será que passei sinais que não tinha percebido? Comecei a duvidar de mim mesma. Eu não queria aquilo.”

Ela afirma que o diretor reforçou várias vezes que ela precisava chegar mais cedo no trabalho e ir embora mais tarde. “Como se fosse para me ajudar, mas ele só queria oportunidades para estar sozinho comigo, sem tanta gente por perto. Mas eu só entendi depois. Na hora eu só falei: ‘Tá bom’.”

Ela foi para casa depois da reunião, mas se sentiu culpada e voltou para a empresa. Passou a madrugada trabalhando e só foi embora quando estava amanhecendo. Dormiu poucas horas e voltou à produtora por volta das 11h. Quando chegou, Freire estava na porta da sala dela. “Que horas são essas?”, criticou. Exausta, ela não respondeu.

Torres comentou a situação com alguns colegas, que, segundo ela, não acreditaram nela e disseram que ela poderia ter entendido errado. Ela se sentiu isolada e se fechou. “Só percebi que era real quando vi ele na cabine com outra menina. Vi que ele tinha a mesma postura, os mesmos trejeitos de quando falava comigo. Depois soube que ele falou coisas muito parecidas para essa outra menina”, ela conta.

Os assédios continuam

Numa festa de confraternização na empresa, Torres diz que Freire ficou ao seu lado o tempo todo, interrompendo-a ou tirando sarro. “Eu estava contando da minha festa de 18 anos, ele interrompeu para dizer que isso era coisa de menina imatura e boba”, diz. Segundo ela, ele estava bebendo e, já alterado, foi para o estúdio gravar uma live. Ainda de acordo com Torres, ele pediu que ela fosse junto. Lá, ele quebrou um copo e ordenou que ela limpasse. Torres ficou constrangida e obedeceu.

A situação foi ficando tão insustentável que Torres decidiu contar para o seu chefe direto, Luan Licidonio, que é sócio e diretor de marketing da Brasil Paralelo. Ela marcou uma reunião pessoalmente com ele no dia 14 de outubro.

Segundo ela, o superior ouviu e perguntou se poderia falar com Freire, uma vez que ele não deveria interferir numa área que não era a dele. Ela pediu que ele não falasse, sabendo que Freire tinha grande poder de influência e isso poderia prejudicá-la. “Chorei muito, fiquei muito vulnerável. Isso não é normal da minha natureza. No final, estava acabada.”

Horas depois, ela se sentiu febril e avisou os colegas de setor que iria para um hospital e que talvez não conseguisse trabalhar no dia seguinte. Cansada, deitou e acabou cochilando. Foi acordada pouco depois com um colega do trabalho tocando o interfone da sua casa. Ele teria sido enviado pelo chefe para ver como ela estava e acompanhá-la no hospital. “Parecia um gesto de cuidado, mas eu entendi que eles estavam com medo que eu fizesse alguma coisa, que contasse o que tinha acontecido, e mostraram que estavam no controle”, disse.

Era o ápice da pandemia de covid, e ela teve que passar alguns dias trabalhando remotamente. Na volta, foi chamada para uma conversa com uma funcionária dos recursos humanos. “Ela me perguntou como eu estava e eu disse que queria ir embora. Ela estranhou por que eu queria tanto aquele emprego e tinha entrado há menos de dois meses”, diz Torres. Na mesma conversa, ela diz ter sido indagada se havia bebido na festa de confraternização. “Ela insinuou como se eu tivesse me oferecido, me insinuado. Ela falou: ‘O que você faz na sexta-feira pode virar fofoca na segunda-feira’. Foi horrível de ouvir porque eu não tinha feito nada.”

“Tive certeza que o meu chefe levou minha denúncia pro Freire, que levou o caso para o RH. Porque logo depois eu fui chamada para essa conversa e soube que outras pessoas com quem tinha comentado também receberam uma chamada. Disseram que nós estávamos criando uma ‘cultura de fofoca’ dentro da empresa”, ela continua.

Demissão e medo de perseguição No final de outubro de 2021, Torres não aguentou a pressão e pediu demissão. Após sua saída, ela soube que outras duas garotas haviam passado por situações parecidas — também teriam sido diminuídas por Freire em público e assediadas por ele de forma reservada. Uma delas a procurou e relatou o que passou por mensagens de texto e uma ligação, que foram anexadas ao processo. Torres soube da terceira vítima por um amigo em comum, cujas conversas também foram incluídas.

Ela cogitou denunciar seu caso para a polícia, mas colegas lhe aconselharam a ter cautela. “Um deles disse que eu estava colocando várias pessoas em risco e que várias pessoas seriam demitidas. Chegaram a falar que um dos sócios da empresa fez uma lista com todos os funcionários que seriam demitidos. Era uma forma de terrorismo, e eu não queria prejudicar ninguém”, afirma.

Em um dos áudios anexados ao processo, uma pessoa próxima da diretoria disse que os sócios ficaram surpresos com a denúncia e concluíram que deveriam demitir os funcionários mais jovens, que estariam contribuindo para um “ambiente de fofoca” na empresa. As pessoas acabaram não sendo demitidas, mas criou-se um clima de medo.

Três meses depois do pedido de demissão, Torres pediu para a secretária do CEO da Brasil Paralelo, Henrique Viana, uma reunião para contar para ele o que havia passado, mas não teve resposta. Ela tentou procurar também o seu ex-chefe direto e chegou a enviar um áudio contando, mas não recebeu resposta.

Torres soube que Freire só foi demitido em agosto de 2022 — dez meses após o seu pedido de demissão –, depois que outra funcionária da Brasil Paralelo conseguiu gravar declarações insinuantes de Freire e teria mostrado os áudios para os donos da empresa.

Torres diz que hoje não vê mais documentários da Brasil Paralelo e não acredita mais nos ideais da empresa. Ela conta que demorou para tomar providências por medo de ser prejudicada pela grande influência de Freire. No ano passado, ela gravou um vídeo no Instagram falando da sua história, mas recebeu uma onda de ódio por parte dos seguidores de Freire e fechou a conta. “Disseram coisas horríveis, que ele jamais iria querer me comer, que não é bom contratar mulher, me ameaçaram. Foi horrível”, diz.

“Estou disposta a ir até o final, mesmo com toda a influência dele, porque sei que é importante. É muito triste ser vítima e se tornar responsável, mas mesmo sem querer estar nessa posição eu me tornei responsável. Não posso deixar que continue essa injustiça.”