Entrevista com Olívio Jekupe, indígena Guarani da aldeia kakane Porã (PR), sobre sua obra de 30 livros e seus pensamentos políticos sobre a defesa da cultura indígena e da demarcação de terras indígenas no Brasil.
AND: Você tem quase trinta livros publicados, alguns pela sua própria editora, é isso mesmo?
OLÍVIO: Eu tenho trinta livros publicados por várias editoras e dois pela minha editora, que eu criei há pouco tempo atrás, 2021 ou 2022 se não me engano. Lancei dois livros por ela, estou com um projeto, se for aprovado, de lançar outro livro pela minha editora, a Jekupe.
AND: Os seus livros tem um tema em geral, em comum?
OLÍVIO: Eu comecei a escrever em 1984. Naquela época, eu não tinha experiência de como publicar um livro. Mas eu tinha descoberto um talento, que era escrever. Então eu comecei a escrever com letras, para cantar, mas nunca tive dom para cantar. Depois comecei a escrever poesia, mudei o estilo para poesia. Depois, em 1984 também, comecei a escrever romances, mesmo sem ter a experiência de como escrever romances. Pegava um caderno e uma caneta e fui escrevendo um romance. Em 1984 escrevi um romance, mas não tenho ele mais porque ele queimou, perdi esse conto. Mas em 1985 eu tinha um romance crítico, criei uma história sobre um índio que entrava em um seminário para ser padre. Eu achava estranho o índio ser padre, achei melhor que ele fosse um pajé da aldeia, então eu fiz a história para mostrar isso, porque na década de 80 havia muitos índios entrando pro seminário. Então eu escrevi esse vídeo como uma crítica, sobre como ele ia sofrer muito preconceito lá dentro (do seminário). Lancei esse livro agora, esse ano, que tem como título O Breviário de um Índio. Escrevi em 1985 mas nunca tinha mandado para uma editora, mas ano passado mandei, a editora gostou e lancei agora. Só procurar a editora Urutau, daí vai ter acesso a esse livro […]
Nessa época também comecei a escrever contos, e nessa época eu escrevia muitos contos críticos, eu gostava de escrever coisas críticas porque nessa época eu lia muitos romances e isso abriu minha mente para escrever sobre muitas coisas problemáticas como invasão de terra, violências aos povos indígenas, destruição da floresta, gostava de escrever sobre essas coisas. Mas eu percebi, depois de eu lançar meu primeiro livro em 1993, eu percebi que não adiantava tentar publicar livros críticos porque as editoras não tinham muito interesse nessa área. O interesse das editoras, quando a gente começou a ter mais espaço a partir de 2000, eles queriam literatura infanto-juvenil, então eu comecei a escrever nessa área também. Então eu tenho vários livros em literatura infanto-juvenil […] No Brasil, as editoras não tem interesse em publicar um livro crítico porque é mais difícil de vender, porque eles precisam vender os livros pro MEC, pra Secretaria da Educação, então eles tem mais interesse a área infantil, por isso eu tive a intenção de criar a Editora Jekupe, eu posso fazer publicar um livro crítico quando eu quiser com tranquilidade. Então eu lancei o livro Casa de Passagem: a luta das mulheres indígenas de maneira independente pela nossa editora, a Jekupe. A gente fez por conta própria, uma publicação simples. Depois eu lancei pela editora Jekupe O choro da Mãe Terra, que é um livro bem crítico, pra conscientização, e por sorte tive apoio do Instituto Alok para lançar. Então a gente pode escrever livros críticos e correr atrás de projetos, patrocínios. A Editora Jekupe tem toda a liberdade de publicar livros críticos, basta os indígenas que quiserem publicar fazerem o projeto.
AND: De onde veio a vontade de escrever?
OLÍVIO: Em 1984, eu gostava muito de ler, gostava de ler Leonardo Boff, que era um dos maiores críticos do Brasil e do mundo, escrevia muitos livros críticos. A partir dele houve uma grande mudança no Brasil nos anos 80, falava-se muito da Teologia da Libertação, o Leonardo Boff escrevia muito nessa área. Então isso me inspirou muito. Outro inspirador que me ajudou muito a pensar crítico foi Jorge Amado. Então foi Jorge Amado e Leonardo Boff, eu gostava de ler esses dois, isso me influenciou muito a escrever crítico, então eu, novo, escrevia muito crítico mas sem acesso a publicação. Por isso eu entrei na área infanto-juvenil, para ter espaço. Como eu lia muito Leonardo, eu pensava muito na questão indígena, no que a gente pode fazer. Eu pensava que a gente escrever seria muito importante para conscientizar a sociedade, porque a sociedade fala nas escolas sobre a questão indígena, mas só a visão ultrapassada, de 1500, do passado dos povos indígenas e ler José de Alencar. José de Alencar é muito famoso no Brasil, mas eu achava que nós, indígenas, tínhamos que escrever para mostrar a nossa realidade. Porque a realidade que o branco escreve é a realidade dele, não é a nossa. Por isso eu sou um crítico a José de Alencar, porque ele escreveu O Guarani e nós estamos procurando esse Guarani até hoje, porque a gente não sabe de que planeta ele é. É uma visão dele, não é a visão do Guarani. Por isso o surgimento de escritores indígenas na década de 80 abriu as portas, o MEC começou a entender a realidade indígena, daí surgiu a lei 11.645, que é pra estudar sobre os povos indígenas. Mas para estudar sobre os povos indígenas é importante estudar os autores indígenas porque nós vamos escrever uma visão diferente, uma literatura nativa, diferente de uma literatura não-indígena, onde o não-indígena escreve sobre a visão dele do índio, ele quer que o índio seja daquele jeito. Então a gente tenta escrever a nossa história, mesmo na literatura infantil, a nossa cultura, então eu escrevi A Mulher que Virou Urutau, que é um pensamento guarani, é contado na aldeia, isso é importante para nós. Depois, escrevendo a parte crítica, a gente vai chegando devagarzinho […] Eu escrevi um livro chamado A invasão, onde eu falo sobre essa invasão que aconteceu no Brasil, porque o Brasil não foi descoberto, foi invadido. Então a gente tem que mudar a mentalidade do povo porque todo ano é a mesma coisa, falar de descobrimento do Brasil, todo mundo sabe que é mentira. Pedro Álvares Cabral veio para cá dar um golpe, ele não veio porque errou o caminho. O Brasil já era de Portugal, mas a gente ainda não sabia. Em 1494, o Tratado de Tordesilhas, houve um acordo em que a Espanha ficava com uma parte e outra, que era o Brasil, ficava com Portugal, o documento já estava assinado. Então como Pedro Álvares veio pra cá? De tantos territórios, ele veio parar logo aqui? Isso é tudo um golpe, a gente precisa desmentir isso e falar que o Brasil foi invadido. Por isso é importante o surgimento dos escritores indígenas, porque a gente vai colocar a nossa visão e não a deles. Como pode se passar tantos séculos e eles ainda falarem que o Brasil foi descoberto e não invadido, se todo mundo sabe que é mentira. Então através da literatura nativa, eu acredito que um dia as coisas vão mudar e os professores vão falar a verdade. E depois de falar a verdade, os livros no futuro, dos historiadores, vão vir escrito que o Brasil foi invadido e o descobrimento, esquece […]
AND: Queria saber um pouco mais sobre a trama do seu último livro, O breviário de um índio, e como ele se relaciona com o que você disse sobre a realidade dos indígenas contada pelos indígenas.
OLÍVIO: Hoje em dia, nós temos alguns padres indígenas no Brasil. Na década de 80 se formou o primeiro padre indígena no Brasil. Então a visão é que nós sempre fomos uma população pequena no Brasil, e você ter um índio padre já afeta porque ele não pode se casar e procriar. Então ele não vai ter filhos, o que já afeta. Além disso, toda aldeia no Brasil tem seus pajé, e eles são a parte cultural, a parte tradicional, que vai mostrar a história, contar histórias, e você ter um padre indígena não vai contar a nossa história, vai contar outra visão. Então o livro vai tentar mostrar que o indígena não tem que ser um padre, mas um pajé. E daí nessa história, esse indígena vai entrar lá dentro (do seminário) e vai observar várias coisas, principalmente o preconceito. Eu escrevi essa história em 1985, era outra realidade, o indígena lá dentro vai sofrer muito preconceito porque as pessoas tem a visão delas. Eu gosto muito desse romance, ele ficou guardado por 39 anos e a agora foi publicado.
AND: Você também é um divulgador da cultura indígena, pode me contar como é isso?
OLÍVIO: Eu acredito que houve uma grande mudança dos anos 80/90 para cá, porque hoje é importante a gente saber que há muitos indígenas fazendo faculdade, com muito conhecimento. Então antigamente havia muitos grandes líderes indígenas, mas que muitas vezes não tinham o conhecimento do branco. Então a escola vem sendo muito importante, porque antigamente a gente tinha que contar todas as histórias oralmente, as pessoas que tem o dom (da história oral). E hoje você tem indígenas estudando que descobrem seu talento como escritor, então isso é importante para, através da literatura, é um jeito da gente divulgar a cultura. Cada livro que a gente escreve é uma parte da cultura que a gente está escrevendo. Eu lancei um livro chamado Tekoa: conhecendo uma aldeia indígena, por exemplo, em que eu criei uma ideia para tentar mostrar como é o dia a dia em uma comunidade guarani. Porque no Brasil são vários povos, então cada escritor indígena vai seguir a mentalidade de seu povo. Quem é Kayapó vai seguir a mentalidade Kayapó, que é uma maneira de mostrar sua cultura. Tem indígenas hoje fazendo trabalho com teatro, até na novela, tem indígena cantor, que é um jeito de mostrar sua cultura. Meu filho, por exemplo, inclusive, é conhecido no Brasil, as pessoas gostam da música dele, o Owerá, ele canta rap em Guarani, que é um estilo que não é nosso, mas através disso ele mostra a nossa cultura e mostra a crítica. Meu filho faz muitas críticas através do rap. Nós temos muitas formas de mostrar. Um indígena advogado, ele tem sua cultura e tem conhecimento para defender a causa indígena. Então hoje em dia nós estamos divididos em várias formas de defesa, o que não acontecia antigamente porque não tinha escola nas aldeias. Então hoje, tendo escola nas aldeias, esses indígenas vão estar preparados para serem um defensor e um divulgador da cultura através da escrita, dando palestra… Antigamente quem dava palestra sobre os indígenas eram os antropólogos, mas hoje inverteu, é o próprio indígena que está dando palestra.
AND: Qual você entende que é a principal pauta dos indígenas hoje?
OLÍVIO: Tem muitas, saúde, educação, respeito, mas a principal de tudo é a demarcação das terras indígenas, porque sem demarcação a gente corre muito perigo. Mesmo demarcado a gente corre perigo, mas sem demarcar é pior. Desde 1500 a gente é atacado, perdendo terras, sendo invadido. E hoje, depois da Constituinte, o índio teve mais direito de reivindicar, então a gente reivindica direitos que são garantidos, mas não respeitados, especialmente por fazendeiros e políticos. Porque político no Brasil não gosta de índio, gosta de lucro. Então o povo indígena no Brasil, estamos sempre lutando, de um jeito ou outro estamos sempre lutando, não tem como parar, estamos há mais de 500 anos lutando, então estamos sempre lutando em defesa da cultura. A demarcação é difícil no Brasil, porque nós sempre vamos ter nossos inimigos, que são os políticos e os fazendeiros, que sempre vão querer as terras indígenas. Toda terra no Brasil pertence aos povos indígenas, historicamente, mas na prática isso não acontece. Então você tem que lutar pela demarcação, ter o direito de ocupar territórios, e muitas vezes isso não é respeitado, porque as pessoas tem a visão de que o indígena não vai fazer nada com aquelas terras, o fazendeiro tá sempre de olho nas terras indígenas. Mas as pessoas tinham que entender que aquela terra que é uma floresta, uma aldeia na floresta, quando a gente protege a floresta, ela não é para nós, é pro mundo todo. Se existe oxigênio no Brasil, é graças às florestas indígenas. Se você olhar as terras no Brasil, se você juntar todos os fazendeiros no Brasil, todas as fazendas, vai dar uma pancada de gente, e você compara com as aldeias indígenas, as aldeias tem mais floresta. Porque a fazenda, uma fazenda grande, de 500 alqueires de terra, às vezes tem mais ou menos 2 por cento de mata, você olha as fazendas não tem uma árvore, a árvore é prejudicial para eles, porque uma árvore vai 50 passarinhos, que vão pegar as sementes, espalhar e procriar mais animais, mais pássaros. Os fazendeiros não querem isso, querem um deserto pra eles plantarem. Então se tem floresta no Brasil é porque tem comunidade indígena. Na Amazônia, no Mato Grosso, você pega uma aldeia grande, de 500 alqueires, 495 mais ou menos é floresta, então esse 5 por cento dá pra eles sobreviverem, fazerem suas plantações e ainda venderem um pouco. Você vive da caça, da pesca, do oxigênio, das coisas naturais. Então o indígena consegue viver disso, mas o branco não consegue porque o pastor tem uma fazenda pra ele, ele vai destruir tudo, primeiro vai lucrar em cima da venda da madeira, depois vai fazer plantação ou criar gado. Então essa é a diferença do indígena, porque ele é considerado vagabundo porque não faz nada, mas quando a gente não faz nada, a gente faz mais do que o branco, porque a função do branco é destruir e a nossa é proteger a floresta.
AND: O que você acha das tramitações do marco temporal das terras indígenas?
OLÍVIO: É um absurdo. Nós continuamos sofrendo desde 1500, antigamente era um massacre, podia matar índio a rolé, os bandeirantes ganhavam pra matar índio. Hoje, criou-se as leis em defesa da classe indígena, mas mesmo assim ela não funciona. Porque os fazendeiros vão continuar sempre desse jeito, então sempre matam índio e hoje eles matam através da lei. Falam que não pode invadir terra indígena, então eles criam uma lei contra. Esse marco temporal que eles vetaram, foi uma jogada pra pegar as terras indígenas com a lei, pra dizer que tem autorização. Ficou alguns anos ali os povos indígenas se reunindo em Brasília, falando com os ministros pra cancelar essas coisas, e depois de vários anos a lei foi vitoriosa, os povos indígenas ganharam. Mas a gente sabe que o branco, ele é complicado, ele tá sempre de olho. Então ganhou um dia, nós comemoramos a vitória. E daí no dia seguinte os deputados fizeram algo secreto à noite e criaram uma lei contra. Então o branco é complicado, ele vai sempre lutar, porque ele quer as terras indígenas, eles não estão satisfeitos com o que têm. Nós sofremos sempre. Então nós sofremos desde 1500 e hoje a gente sofre a mesma coisa, eles continuam matando a gente, matam através da lei.
AND: Como você vê a relação entre a política e a literatura na sua obra?
OLÍVIO: Como escritor, vejo que a gente já está fazendo política. Eu estudei na PUC do Paraná, depois estudei na USP. Isso me ajudou a desenvolver os meus textos. Então a gente já faz política. Muita gente fala “porque você não se candidata a vereador?” Eu falo, não, eu não preciso, eu já sou um político, eu faço minha política através da literatura. Então eu não quero ficar em gabinetes, correndo pra lá e pra cá, em reuniões e sei lá o quê. Eu quero chegar ao povo através da literatura, então eu gosto muito de viajar, dar palestra, estou viajando sempre para algum estado, cidade, e isso me deixa feliz, porque a minha alegria é você ter a oportunidade de falar com o povo.