Há 74 anos, em 27 de junho de 1950, o governo da Coreia do Sul dava início aos Massacres da Liga Bodo — sequência de atrocidades perpetradas contra civis sul-coreanos suspeitos de serem simpatizantes do comunismo ou dos ideais de esquerda. Estima-se que até 200 mil pessoas foram assassinadas durante os expurgos anticomunistas da Coreia do Sul. Durante décadas, os Estados Unidos responsabilizaram falsamente o governo da Coreia do Norte por essas mortes.
Ocupada militarmente pelo Japão desde a queda da Dinastia Qing, a Coreia foi submetida a um projeto colonial extremamente violento durante a primeira metade do século 20. Os japoneses confiscaram as terras agricultáveis, submeteram os coreanos ao trabalho forçado e criminalizaram a cultura e as tradições do país. Um código penal barbaresco foi instituído, punindo até mesmo contravenções leves com açoitamentos. Centenas de milhares de coreanas foram sequestradas e usadas como “mulheres de conforto” — prostituição forçada a serviço dos militares japoneses.
Com a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, a península da Coreia foi ocupada por tropas soviéticas e norte-americanas. A derrota dos japoneses gerou expectativa no povo coreano pela restauração de sua autonomia política, mas as potências que venceram o conflito tinham outros planos. Antecipando a polarização do mundo que marcaria a incipiente Guerra Fria, a península coreana foi dividida em duas zonas de influência distintas, delimitadas ao longo do Paralelo 38.
Na porção setentrional, foi instaurado um governo socialista integrado à esfera de influência soviética, a República Popular da Coreia, ou Coreia do Norte, sob o comando do revolucionário Kim Il Sung. Na parte meridional da península, dita Coreia do Sul, os Estados Unidos estabeleceram um governo militar, cujo comando foi entregue ao tenente-general John Hodge. O regime militar norte-americano manteve intactas as leis coloniais e a estrutura administrativa legadas da ocupação japonesa — e optou até mesmo por manter os burocratas japoneses em seus cargos, uma decisão que provocou a indignação dos sul-coreanos.
Em 1946, os camponeses da província de Daegu iniciaram uma rebelião contra a ocupação do país pelos Estados Unidos, mas foram fortemente reprimidos pelos militares norte-americanos em um massacre que deixou mais de 250 mortos e 7.500 feridos. Pouco tempo depois, os trabalhadores de Busan iniciaram uma greve geral que se espalhou por todo o país. Os norte-americanos responderam instituindo uma legislação autoritária que suprimiu o direito de greve e criminalizou as organizações sindicais e os movimentos sociais. Por fim, quando um grande levante popular eclodiu em Yeongcheon, o comando militar dos Estados Unidos decretou lei marcial e enviou tropas para massacrar a população.
Com dificuldades crescentes em controlar a Coreia do Sul, os Estados Unidos decidiram “terceirizar” a gestão para um governo-fantoche. Em julho de 1948, em uma eleição indireta, Syngman Rhee foi escolhido pela Assembleia Nacional para presidir o país.
Rhee era um coreano que vivia há décadas nos Estados Unidos e já exercera o cargo de líder do governo exilado da Coreia durante o período da ocupação japonesa. Amigo pessoal do ex-presidente Theodore Roosevelt, o sul-coreano era conhecido por seu anticomunismo exacerbado e por ter uma visão de mundo alinhada à perspectiva política norte-americana.
Syngman Rhee ficaria à frente do governo sul-coreano por 12 anos, consolidando um regime ditatorial brutal, marcado por abusos, corrupção e por uma sangrenta campanha de perseguição política contra seus opositores. Já no início de seu governo, enviou o Exército para esmagar o levante popular na Ilha de Jeju. O massacre deixou mais de 30 mil mortos — cerca de 10% da população da ilha. Pouco tempo depois, as tropas do governo conduziram o Massacre de Mungyeong, assassinando 88 civis (incluindo 32 crianças) por suspeita de serem apoiadores do comunismo.
Em 1949, Rhee criou um programa de “reeducação” para cidadãos sul-coreanos vistos como “potencialmente subversivos” — isso é, pessoas suspeitas de serem socialistas ou comunistas, militantes de partidos de esquerda, sindicalistas, grevistas, ativistas de movimentos sociais, membros do movimento estudantil, pessoas acusadas de antiamericanismo, etc. O movimento recebeu o nome de “Ligas Bodo” (oficialmente “Ligas Nacionais de Reabilitação e Orientação”, ou “Bodo Yeonmaeng”) e tinha como objetivo oficial a “reintegração dos indivíduos na sociedade coreana”.
Major Abbott / U.S. Army / Wikimedia Commons Presos políticos prestes a serem executados pelos militares sul-coreanos no campo de concentração de Taejon, em julho de 1950
Na prática, o programa das Ligas Bodo consistia no envio de pessoas consideradas “indesejáveis” ou reconhecidas como potenciais opositores do regime-sul coreano para campos de concentração. O programa era coordenado por funcionários da administração colonial japonesa. Os prisioneiros viviam em ambientes extremamente insalubres, eram submetidos ao trabalho forçado e a rotinas de abusos, torturas e maus tratos. As Ligas Bodo foram implementadas em larga escala em todo o país: em menos de um ano, mais de 300 mil pessoas já haviam sido encarceradas nas “instalações correcionais” da liga.
Em 25 de junho de 1950, respondendo a um ataque dos militares sul-coreanos à cidade de Kaesong, o exército da Coreia do Norte iniciou uma incursão ao território da Coreia do Sul. Teve início assim à Guerra da Coreia, um dos conflitos mais sangrentos do século XX, que se estendeu por três anos e deixou um saldo de até 5 milhões de mortos. Dois dias após o início da guerra, em 27 de junho de 1950, o ditador Syngman Rhee ordenou aos militares da Coreia do Sul que executassem todos os presos políticos detidos nos campos de concentração das Ligas Bodo. A justificativa era de que os prisioneiros eram potenciais colaboradores dos comunistas da Coreia do Norte.
O exército da Coreia do Sul iniciou a matança em larga escala no dia seguinte, fuzilando todos os prisioneiros nos campos de Hoengseong e Gangwon. Em seguida, avançaram rumo ao sul, cometendo uma vasta sequência de massacres em cidades como Wonju, Chungju, Sangju, Yeongju e Daejeon. Em geral, as vítimas eram assassinadas por fuzilamentos em massa e tinham seus corpos jogados e valas comuns. Nos campos localizados no litoral, os militares sul-coreanos costumavam amarrar as vítimas e atirá-las no mar para que se afogassem. Os internos dos campos não eram os únicos alvos dos expurgos. Os soldados também faziam buscas nas cidades com listas de “inimigos” e pessoas denunciadas como comunistas. Estima-se que cerca de 200 mil civis tenham sido assassinados durante os Massacres da Liga Bodo.
Oficiais das Forças Armadas dos Estados Unidos sabiam, sancionaram, assistiram e documentaram os massacres. O general Douglas MacArthur, comandante da força expedicionária norte-americana durante a Guerra da Coreia, minimizou a importância dos massacres e afirmou se tratar de “um assunto interno”. Outros oficiais norte-americanos deram aval para as chacinas. É o caso do tenente-general Rollins Emmerich, que autorizou o governo sul-coreano a assassinar os presos políticos no campo de Busan. Há registros documentais de soldados estadunidenses que permitiram e acompanharam até mesmo a execução de crianças. Soldados britânicos e australianos também testemunharam os massacres.
Malgrado o fato de que sabia a origem dos massacres, o governo dos Estados Unidos tentou responsabilizar falsamente a Coreia do Norte por essas mortes. O Pentágono chegou a financiar a produção de um filme de propaganda chamado “The Crime of Korea”, lançado em 1950, em que apresentava evidências fabricadas ligando o “regime comunista de Kim Il Sung” e os militares norte-coreanos às matanças. A narrativa revisionista foi mantida por décadas pelas autoridades norte-americanas. Não obstante, meio século após os massacres, a Comissão da Verdade e Reconciliação da Coreia do Sul investigou o ocorrido e confirmou que os responsáveis pelas mortes foram os seus militares, sob ordens de Syngman Rhee e com anuência dos oficiais norte-americanos.
No ano 2000, documentos militares do Pentágono perderam a classificação de confidencialidade, sendo abertos ao público. Os documentos divulgados — fotografias, relatórios, telegramas, etc. — comprovam que soldados dos Estados Unidos estiveram presentes durante ao menos dez massacres, fotografando e filmando os corpos das vítimas. Esse material serviu de matéria-prima para a produção do filme de propaganda de 1950, que buscava responsabilizar os norte-coreanos pelos assassinatos.