São muitos os locais especializados em cafés gourmets em Kiev, capital da Ucrânia. De manhã, eu podia observar os primeiros abrindo suas portas, jovens garçons debruçados sobre caixas de pão fresco ou enfileirando docinhos coloridos nos balcões de madeira, atrás de letreiros com nomes ilegíveis para mim. Mas eles abrem tarde; então, no nosso segundo dia na capital, 22 de maio, não tivemos tempo de tomar um bom café, pois a van já nos esperava pontualmente às 9h. Iríamos conhecer alguns vilarejos que chegaram a ser tomados pelos russos em 2022.
Vale relembrar. O plano de Vladimir Putin de tomar a Ucrânia de assalto incluía, além de abrir um grande flanco ao leste, a entrada de tropas terrestres a partir da Bielorrússia, ao norte, que em poucas semanas atravessaram a região de Chernihiv, tomaram as cidades de Chernobyl, Ivankiv, Dymer e Borodyanka e rodearam Kiev, bombardeando a capital por dias a fio. O destino, portanto, foi decidido em batalhas corpo a corpo no meio desses mesmos vilarejos que iríamos visitar. A capital não caiu, mas os municípios ao redor enfrentaram semanas de ocupação russa, com consequências nefastas e até hoje latentes. Agora, mais de dois anos depois, as lideranças locais trabalham para construir como deve ser recontada essa história, organizando de maneira cuidadosa, com enorme curadoria, o que deve e o que não deve ser mostrado ao visitante. É por isso que na coluna de hoje vou falar sobre como dois países se esforçam em construir versões distintas sobre o conflito, e como a propaganda é uma frente inevitável de qualquer guerra, ainda mais na era da pulverização da informação e da plataformização da internet.
Saindo de Kiev, terrenos que parecem baldios se revelam, na verdade, áreas repletas de trincheiras que escondem homens uniformizados; os checkpoints são frequentes; à beira da estrada, uma funerária exibe modelos de lápides, e uma delas tem o formato de um soldado portando um fuzil. Está claro que estamos em guerra. É na mesma toada que a vila de Moshchun, 30 quilômetros ao norte, se apresenta. Os muros de tijolos aparentes estão coalhados de buracos de balas, a maior parte pequenos, mas alguns têm diâmetro mais largo, arrancaram consigo pedaços da alvenaria. Aqui passaram os russos.
Trata-se de uma pequena comunidade amarronzada, sem muita pretensão de beleza. Diante de uma placa colorida que diz “eu amo Moshchun” em alfabeto cirílico, uma jovem de cabelos curtos e roupas agênero, Iryna Kabalska, de 35 anos, nos recepciona e nos apresenta o prefeito da aldeia, Vadym Zherdytsky, um senhor de ar circunspecto, cabelo rareando e grandes olhos azuis. Iryna diz que ele se tornou uma liderança depois da sua atuação nas cruas batalhas que se deram por ali entre fevereiro e março de 2022. As tropas da Rússia queriam tomar a cidade por ser tão próxima a Kiev; além disso, o rio ajudaria na travessia.
A conversa com Vadym é traduzida pela compenetrada Yulia, do Ukraine Crisis Media Center (UCMC), que anota cada detalhe do que ele diz num caderninho e depois explica tudo com uma elegância que as palavras de Vadym não possuem. Direto, endurecido pela guerra, Vadym logo no começo chama os russos de “porcos” e faz um gesto com as mãos como se fossem patas para indicar que não sabem fazer nada que exija cuidados manuais. Ele diz assim: “Um porco nunca será capaz de ensinar a seu mestre como viver”. Na sua cabeça, trata-se de uma batalha da civilização contra a barbárie.
“Eles achavam que seriam bem-vindos”, diz. “Achavam que iríamos recebê-los com pão e sal, e nós os recebemos com coquetéis-molotovs.”
Vadim participou da “defesa territorial”, grupos civis que agem junto ao Exército nos combates. Nos primeiros dias, evacuou mulheres e crianças para um resort próximo, mandou alguns moradores fazerem guarda dos armazéns onde havia comida e distribuiu os cinco parcos rifles que ganharam do Exército. Depois, seguiu buscando feridos e participando das batalhas. Conta que alguns moradores alteraram as placas para desnortear os russos; as crianças aprenderam a fazer coquetéis-molotovs nos quintais das casas. “Quem tinha armas passou a usá-las. Quando começamos a matar os soldados russos, pegamos mais armas, rifles e granadas.” Vadym refere-se às ofensivas russas como “furacões”. “De manhã a vila estava nas mãos deles, à tarde, nas nossas mãos.”
Ele pausa, aponta para baixo, agacha e pega uma lâmina de metal dentre as muitas pedrinhas no chão de terra. “É um pedaço de artilharia russa”, diz.
“Na minha família eu tenho seis filhos e dez netos. O que eu ia fazer?”, pergunta. E, em seguida, Yulia: “Vadym diz que não tem mais medo de atirar em pessoas”.
Em grupo, caminhamos até um memorial aos comandantes militares que morreram na batalha de Moshchun, onde há também algumas trincheiras, mantidas de pé por troncos grossos, cobertas de lona preta e um tecido camuflado. Estão limpas, me parecem intocadas – e fico em dúvida se de fato são trincheiras do conflito passado ou simulacro de trincheiras para benefício dos visitantes que agora começam a pipocar por aqui para ouvir histórias de guerra.
A poucos quilômetros dali está a comunidade de Irpin, que recebeu o título de “cidade heróica” por ter sido local da primeira derrota russa. A ponte sobre o rio de Irpin foi destruída pelos ucranianos para evitar a passagem das tropas em direção à capital – hoje é uma escultura de ferros retorcidos e blocos quebrados de concreto, um caminho que para no abismo; acima dele, o azul e amarelo da bandeira ucraniana. Vai virar um memorial da batalha vitoriosa. Ali perto, outra escultura a céu aberto. São pilhas e pilhas de carros alvejados pelas tropas invasoras, encontradas pelas estradas e ruas depois do recuo. Cravejados de buracos de balas, formam uma torre surrealista, marrom-cobre, enferrujando a céu aberto. Sobre elas há pinturas de grandes girassóis.
Não são apenas as imagens que importam na guerra. Os números, por exemplo, são extremamente controlados. Ninguém sabe com precisão quantas pessoas – civis e militares – morreram. O governo ucraniano publica dados sobre soldados russos que quase todo mundo acredita serem inflados: seriam mais de 500 mil “mortos e feridos”, o que obviamente não significa nada. O governo russo, por sua vez, faz o mesmo: diz que seriam meio milhão de soldados ucranianos mortos. Do mesmo modo, as baixas de cada lado são subdimensionadas. São dados impossíveis de verificar. Além disso, as palavras são fundamentais. Os soldados aqui são “defenders”, a guerra é a “full-scale invasion”, essas cidades, uma vez invadidas, foram “liberadas”. Durante nosso tour, não há um entrevistado que não agradeça por estarmos ali e que não reforce a importância de levarmos a mensagem da Ucrânia para o mundo exterior.
A visita feita a convite do UCMC e da Fundação Gabo faz parte do projeto “Explicando a Ucrânia para o Sul Global”, financiado pela Open Society Foundations. Antes do nosso grupo de jornalistas latino-americanos, Myroslava e seus colegas receberam um grupo de asiáticos e, a seguir, será a vez de jornalistas africanos. O objetivo do programa, segundo folheto que recebemos, é “explicar as peculiaridades das relações russo-ucranianas através de uma lente pós-colonial para contribuir para uma mudança de foco e uma correta compreensão dos eventos na Ucrânia”. Aquela viagem, portanto, embora não seja promovida diretamente pelo governo, também faz parte do que pode ser chamado de uma engatinhante empreitada de soft power ucraniano.
O UCMC é citado em diversos estudos acadêmicos como uma iniciativa da sociedade civil para se contrapor aos esforços de propaganda da Rússia, que aumentaram exponencialmente depois da invasão da Crimeia em 2014. Depois da revolta popular de Euromaidan, que pôs a correr o presidente pró-rússia e exigiu avanços mais rápidos em direção à integração com a União Europeia, houve uma enxurrada de campanhas de desinformação dentro e fora do país, potencializadas por exércitos de bots, influenciadores, canais e redes articuladas pelo governo russo. Como vimos aqui no Brasil, por lá centenas de fake news específicas eram construídas sob medida para reforçar as mesmas narrativas mais amplas: que a Ucrânia é dominada por nazistas e precisa ser “denazificada”; que os falantes de russo são brutalmente reprimidos pelo governo nacionalista e até enviados a campos de concentração; e que Zelensky é um ditador e não representa a vontade do povo.
Nada disso é verdade, mas a realidade nem sempre é preto e branco, pelo contrário: aos bons jornalistas, cabe encontrar as áreas cinzentas e furta-cor.
Lá nos idos de 2014, os hábitos de consumo de informações pelos ucranianos ajudou na disseminação dessas narrativas. Até meados da década passada, boa parte das fontes de informação eram russas. Segundo um estudo da Kantar TNS CMeter256, entre os dez sites mais visitados estavam o “Google” russo, Yandex, e todos os seus serviços (62%), o serviço de e-mail Mail.ru (62%), bem como as redes sociais Vkontakte (78%) e Odnoklassniki (47%). Os canais de TV russos também estavam entre os mais assistidos, em especial nas regiões mais russófonas como Donbass e Luhansk, que foram anexadas depois da invasão de 2022. Segundo um estudo realizado pela Internews, em 2014 27% dos ucranianos assistiam a canais televisivos russos.
A Rússia foi o primeiro país a entender que a guerra informacional – ou guerra “híbrida” – seria uma frente essencial na política de defesa do século 21. A partir dos anos 2000, começou a modernizar sua doutrina para abarcar uma enorme variedade de operações que poderiam amplificar seus esforços estratégico-militares. Canais foram comprados por aliados de Vladimir Putin, críticos foram presos e leis foram criadas para censurar sites oposicionistas e permitir amplo acesso aos dados dos usuários de serviços de internet (inclusive os de países vizinhos).
Há muitas pesquisas acadêmicas sobre operações de influência pró-Rússia impulsionadas por redes de bots e contas automatizadas, eu poderia passar uma semana falando sobre elas. Recomendo o livro Words and wars: Ukraine facing kremlin propaganda, que compila diferentes estudos, publicado em 2018 pela Internews. E cito um levantamento em especial. Na época da invasão, um grupo de pesquisadores da Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, analisou quase 350 mil mensagens pró-Rússia no Twitter. Vinte por cento delas foram impulsionadas por robôs, o que indica, segundo os autores, “a presença de uma campanha de propaganda russa em grande escala nas redes sociais”.
Hoje, a estrutura de propaganda russa funciona de maneira mais ou menos pulverizada e inclui empresas, institutos, think tanks, produtoras, agências e canais oficiais, grupos de “cyber troops”, influenciadores pagos ou apenas próximos ao Kremlin. Uma das fazendas de trolls mais conhecidas foi aquela criada em 2013 pelo ex-aliado de Putin Yevgeny Prigozhin, chamada Internet Research Agency. Prigozhin, como sabemos, criou depois o grupo mercenário Wagner Group, tentou dar um golpe e acabou assassinado em um suspeito acidente de avião no ano passado.
Para contra-atacar, o governo ucraniano criou em 2014 o Ministério da Política de Informação (que depois virou Ministério da Cultura e Política da Informação). Uma das medidas mais drásticas tomadas foi a proibição das redes sociais Vkontakte e Odnoklassniki em 2017, o que gerou protestos, mas conseguiu, segundo acadêmicos, reduzir significativamente o impacto das operações russas de informação dentro do país. Na época, as relações da rede social Vkontakte com o serviço de inteligência russo já eram bem conhecidas. A rede é um análogo do Facebook criado por estudantes de São Petersburgo em 2006. Em 2013 o seu criador, Pavel Durov, vendeu as ações na empresa e deixou a Rússia, afirmando que o FSB, serviço secreto, tinha exigido a transferência dos dados dos usuários ucranianos do Vkontakte.
Hoje, a comunicação dos jovens ucranianos continua nas mãos de uma empresa fundada por russos, o Telegram, e é por ali que eles se informam imediatamente quando acontece algum lance momentâneo: de um novo alarme a informações sobre batalhas no front. Mas esse fluxo parece não incomodar o governo ucraniano, que conseguiu de maneira impressionante – digo isso a Myroslava – organizar uma maneira estruturada para disseminar informações urgentes. Cada governador de estado tem seu próprio canal de Telegram, cada canal replica informações oficiais, as narrativas são geralmente uníssonas. O que é bom e ruim, também.
Seguindo na nossa viagem, passamos pela igreja ortodoxa da cidade de Bucha, notória pelo massacre desvelado aos olhos do mundo através das lentes de fotógrafos dos principais jornais e agências de notícias globais, levados a tiracolo quando o Exército ucraniano marchou por ali no começo de abril de 2022, depois de 33 dias sob controle russo. Segundo apurações do New York Times, uma unidade do Exército russo executou dezenas de civis quando batia em retirada.
As fotos da agência Reuters, hoje, formam uma exposição permanente dentro da igreja. “Escolhemos as menos violentas”, explica o padre Andriy Halavin, cujo olhar se torna sombrio quando aponta para uma das imagens. O corpo de um homem mais velho, caído ao lado de uma bicicleta; adiante, um cãozinho. “O nome dele era Volodymyr Brovchenko, tinha cerca de 70 anos. Eu o conhecia muito bem. Esse é o seu cachorro. Ele foi encontrado perto da sua casa.”
O padre conta que foram 400 as pessoas assassinadas durante a ocupação – e que boa parte delas foi enterrada em uma vala comum que ele mesmo negociou com os russos abrir, nos fundos da igreja. Quando a ocupação terminou, os corpos foram desenterrados diante das câmeras e ganharam, finalmente, uma sepultura.
(Putin nega que tenha algo a ver com isso, e há várias teorias da conspiração na internet afirmando que quem cometeu o massacre foram os ucranianos.) Depois, vamos ao vilarejo de Borodyanka, mais especificamente a uma quadra de prédios rompidos pelas poderosas bombas planadoras, lançadas de aviões. No maior deles, de cinco andares, a parte interna dos apartamentos está exposta: há metade de uma cozinha, com mesa e cadeiras, há estantes com livros, ainda, aproximando-se do penhasco formado pelo rompimento do chão, as portas dão para o vazio. Diante desse prédio conhecemos Natalia Buzovetska, uma mulher de uns 45 anos, rosto redondo, cabelos bem negros cortados em uma franja e óculos também arredondados. “Look hot, think cold”, estampa a sua camiseta. Natalia Buzovetska é diretora do centro cultural de Borodyanka e está claramente acostumada a apresentar o cenário para jornalistas estrangeiros. Até o cachorro caramelo que vem nos acompanhar costuma aparecer nessas visitas, segundo me conta Yulia.
Natalia vai listando a invasão russa – a chegada dos tanques, as pessoas desesperadas tentando fugir pelas estradas, longas filas, os números: 8 prédios foram destruídos, 41 moradores morreram, 28 desapareceram; no total, 300 pessoas morreram em Borodyanka. Ela pausa, respira fundo quando peço que me conte sua história. Leva seu tempo. E aí sua voz muda, treme, seus olhos marejam, Yulia se emociona com ela, eu também. Quando os russos chegaram, Natalia e a família se esconderam em um porão com outras 17 pessoas, incluindo filhos e netos. No dia do bombardeio de bombas planadoras, um estrondo anunciou que o seu quintal fora atingido e seu marido tivera o crânio fraturado. “Os bombardeios aéreos vieram no dia 2 de março às 7h47 da manhã” – ela lembra com precisão. Sabe o nome do avião: “O Su-25 veio da Bielorrúsia e voava tão baixo que parecia estar caindo. Nunca vou esquecer o barulho”. Não havia hospitais, mas uma enfermeira cuidou do marido. Natalia olhava para o céu e via uma fumaça negra. “Minha neta tinha 5 anos. E minha filha me disse que não aguentaria mais, o coração se partia. Decidimos ir embora.” Voltaram no terceiro dia depois da retirada das tropas inimigas, no dia 4 de abril. “Em maio, as pessoas ainda estavam com medo de acender as luzes nos apartamentos, e havia destroços que consistiam em pedaços de roupas, móveis e edifícios destruídos por toda parte.”
“Mas estávamos felizes.”
Natalia quer nos mostrar o que parece ser a peça central desta vista desoladora: um graffiti do artista britânico Banksy, gravado na parede de uma das ruínas. Enfeita aquele cenário apocalíptico com beleza e denuncia a intenção de que tudo ali se transforme em um monumento à vitória. No desenho preto e branco, um menino vestido com roupas de judô derruba um homem bem maior e mais velho, num golpe maiúsculo. O nome da obra é “David versus Golias”.
Não há imagem que melhor capture a essência da mensagem que a Ucrânia deseja transmitir para o exterior. Essa mensagem, aliás, tem sido efetiva: no imaginário de grande parte do mundo, a Ucrânia de Zelensky já venceu.
Volodymyr Zelensky reuniu ao seu redor um grupo jovem, que trabalha diuturnamente empregando lições modernas de marketing e que, de certa forma, tem reinventado a propaganda moderna. Quem cuida da imagem e das palavras de Zelensky são alguns dos principais colaboradores da série que o alçou à fama, Servo do Povo. E Zelensky tornou-se mestre em capitalizar em cima da própria – inacreditável – trajetória.
Para quem não sabe. Zelensky, um ator e comediante já famoso, no auge dos seus 30 anos, estrelou em 2015 a série ucraniana de TV Servo do Povo, sobre um professor que se torna presidente da Ucrânia por acaso. A série era uma ácida crítica à corrupção e falta de democracia no país, ainda sob forte influência russa, e foi um sucesso, virou filme, foi parar na Netflix. A seguir, Zelensky fundou um partido com o mesmo nome da série e derrotou, em 2019, o presidente, de lavada, com 73% dos votos. Como a vida imita a arte (eu tentei evitar essa frase, mas não deu), sua eleição foi considerada um tipo de piada, bem como na série. “Nosso país gosta de populistas baratos”, diz, logo no primeiro episódio, um personagem que simboliza a elite ucraniana, um senhor de terno elegante, em um jantar privê em que discute com outros homens ricos e engravatados o futuro político do país. Pois sim.
Zelensky levou consigo, para o palácio, a equipe da sua sitcom. Dois dos responsáveis pelos seus discursos estavam envolvidos com o show. Yuri Kostyuk, roteirista profissional que era o principal escritor de o Servo do Povo, e Dmytro Lytvyn, um jornalista e analista político, que foi consultor. Segundo o jornal britânico The Observer, depois da invasão essa jovem equipe passou a viver com ele no palácio – aquele mesmo que eu visitei em maio e cujas janelas, hoje, são guarnecidas por pilhas de sacos de areia.
É por entender o poder da mobilização online que a equipe faz uma cuidadosa curadoria da imagem, da presença digital e dos discursos de Zelensky. A camiseta verde-oliva portando o brasão de armas ucraniano virou ícone e pode ser comprada em qualquer lojinha de suvenires na capital. No começo da guerra, Zelensky fazia longas lives, dando uma característica de “reality show” para o drama ucraniano. Hoje, publica vídeos mais curtos, mas ainda cheios de palavras bem escolhidas, determina a que jornalistas vai dar entrevistas de acordo com os líderes mundiais a quem quer se dirigir e orienta cuidadosamente cada discurso para o público da ocasião. Ao discursar para o Parlamento britânico, por exemplo, comparou a guerra contra a Rússia à da Grã-Bretanha contra Hitler. Falando ao Congresso dos EUA, ele comparou o bombardeio da Ucrânia a Pearl Harbor e ao 11 de setembro.
O resto do Executivo segue na mesma toada. Assim, em 7 de setembro de 2022, a vice-chanceler, Emine Dzhaparova, compareceu ao evento comemorativo dos 200 anos da independência brasileira. E começou assim seu discurso: “Independência ou morte! Assim como o imperador de vocês falou isso há 200 anos, nós dizemos isso hoje. Não há outra alternativa para a Ucrânia: ou a gente se defende ou é a morte, o fim do país”.
Desde o ano passado, o governo Zelensky entendeu a importância de conquistar mentes e corações na América Latina, região com a qual tem poucas relações. Assim, um plano estratégico de comunicação com a região foi lançado no final de maio. Tem até uma versão em português. Além de ampliar as notícias sobre a Ucrânia na imprensa local, o plano prevê formar uma rede de jornalistas e influenciadores na América Latina para “divulgar informações sobre a Ucrânia e moldar a sua imagem positiva” e tem como um dos seus objetivos “assegurar às audiências latino-americanas que a Ucrânia é capaz de resistir e vencer a guerra russo-ucraniana com o apoio adequado da comunidade internacional”.
Eu não sei se a Ucrânia pode vencer a guerra; sei que está perdendo. Sei, ainda, que está sendo usada como muro de contenção pelas potências europeias e como laboratório de aprendizagem pelo Departamento de Defesa americano. E sei que tem todo o direito de se defender de uma invasão criminosa.
Mas, talvez, o efeito mais nefasto dessa linha narrativa se dê não sobre nós, que visitamos por alguns dias o país, mas sobre os ucranianos. Escrevo isso porque, na noite daquela mesma quarta-feira, ao voltar da nossa longa jornada pelas cidades desocupadas, conheci a jovem jornalista Anna Vlasenko, uma mulher pequena, mas com olhos sérios, que me impressionou pela firmeza das palavras e independência de julgamento. Eu a conheci em meio a taças de vinho branco, numa recepção dentro da embaixada brasileira, no centro de Kiev, onde se via, da majestosa sacada, toda a bonita cidade lá embaixo. Natural de Kharkiv, Anna é correspondente de diversos canais estrangeiros e atua também como fixer nas zonas de guerra. Mas, agora, os bombardeios chegam à casa dos seus pais, a alguns quilômetros da cidade que tem mais recebido ataques. “Eu estava acostumada a ver cidades destruídas, vi muito isso em Donbass”, me disse. “Mas sempre achava que a casa dos meus pais era um lugar seguro. Sabe, você tem um lugar seguro, onde você cresceu, suas árvores favoritas.” Agora, não mais. Em março, a casa que seu pai construiu com as próprias mãos foi quase atingida por um drone – se a arma tivesse caído três metros mais perto, ele não teria sobrevivido.
Para Anna, o controle extremo da informação pelo governo de Zelensky dificulta o trabalho e, em especial, a percepção correta da situação real no teatro da guerra. Ela conta, por exemplo, que foi surpreendida pelo sucesso da iniciativa russa contra Kharkiv, assim como muitos de seus conhecidos. “Se a situação estivesse sob controle, nem teríamos essa ofensiva em Kharkiv, que é tão perto da fronteira”, diz.
Mas o pior, diz Anna, é que a propaganda ucraniana sobre a vitória certa também entrou na sua casa. Mesmo depois de quase ser atingido, seu pai está convencido a não arredar os pés da linha de frente. “Porque meu pai acredita na propaganda ucraniana, que temos um Exército muito forte e temos armas suficientes para nos proteger. E que a situação está sob controle. É uma enorme máquina de propaganda ucraniana que está funcionando para os idosos. É muito difícil conseguir entabular qualquer discussão quando ele ouve notícias todos os dias de que estamos no controle”, ela dispara, exasperada, mas comedida: “Claro que respeito a opinião dele. É a vida dele. E não posso influenciar de forma alguma o que está acontecendo.”
“Mas, dentro de mim, quero salvar a vida deles.”