Ao menos 22 pessoas morreram na terça-feira no Quênia durante um dia de protestos contra o governo liberal de William Ruto, informou nesta quarta-feira (26) a agência de direitos humanos do país, onde novas manifestações foram convocadas para quinta-feira (27).
As manifestações começaram na última semana em Nairóbi e outras cidades para protestar contra os novos impostos previstos no orçamento 2024-2025, apresentado pelo Executivo, que está sendo debatido no Parlamento. O texto prevê a taxação de diversos artigos de necessidade básica para a população, como remédios e itens de alimentação, incluindo um imposto sobre valor agregado (IVA) de 16% sobre o pão e 2,5% sobre veículos automotores, além de aumentar alguns impostos existentes.
O governo de William Ruto ensaiou um recuo ao anunciar a revogação de algumas medidas do projeto, o que não impediu que os protestos se intensificassem nesta semana. Na terça, manifestantes invadiram o Parlamento pela primeira vez na história do país, independente desde 1963.
A cientista política e ativista queniana Irene Asuwa, disse ao Brasil de Fato que os protestos cresceram vertiginosamente e estima-se que milhões de quenianos compareceram à mobilização de terça, não apenas para protestar contra o projeto de lei de finanças, “mas também contra o Parlamento e o governo pelo fracasso em muitos setores”.
“Os médicos estavam em greve porque as questões que levantaram não foram abordadas, os professores do ensino médio ainda não foram pagos. O Quênia continua fazendo empréstimos, há roubo, pilhagem e mau uso do dinheiro público pelo regime, enquanto o serviço público está morrendo”, aponta.
Das 22 mortes registradas pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quênia (KNHRC) durante a repressão aos protestos, 19 ocorreram na capital Nairóbi, assim como “mais de 300 feridos e mais de 50 detenções”, anunciou a presidente do organismo, Roseline Odede.
“Os movimentos agora precisam adotar a educação popular em massa, a proteção coletiva, porque claramente estamos sob um regime perigoso. Precisamos de assembleias populares, porque o Parlamento atual não representa os interesses do povo, e outras táticas de resistência contra o regime atual e a estrutura capitalista e imperial global por trás dele”, defende Irene Asuwa.
A jornalista e ativista Hanifa Adan, uma das líderes dos protestos, convocou novas manifestações pacíficas para quinta-feira em memória das pessoas que morreram na terça-feira. “Amanhã (quinta-feira), nós vamos marchar pacificamente, novamente vestidos de branco, por todos os nossos caídos na batalha. Não os esqueceremos!!!”, escreveu na rede social X.
Governo promete mais repressão
Segundo várias ONGs, incluindo a Anistia Internacional no Quênia, a polícia abriu fogo para tentar conter a multidão, o que levou as pessoas a romper os controles de segurança do Parlamento e invadir o edifício.
A terça-feira foi marcada por saques e incêndios de edifícios em Nairóbi e outras cidades. O governo mobilizou o Exército para reprimir os protestos e, durante a noite, o presidente William Ruto anunciou que continuará a reprimir com veemência “a violência e a anarquia”.
Irene Assuwa aponta que os acontecimentos de terça parecem não ter afetado a postura do presidente, que não mencionou o projeto de lei nem as pessoas que foram assassinadas. “Seu discurso foi condescendente e desdenhoso em relação às preocupações das pessoas. Chamou o povo do Quênia de criminoso por sair às ruas e querer sobreviver. Muitas pessoas ainda permanecem sequestradas. Ninguém sabe onde elas estão, as pessoas estão recebendo ameaças. As estações de mídia receberam ameaças de serem fechadas.”
A cientista política aponta que a cobertura da imprensa local em relação aos protestos de terça foi tendenciosa, omitindo a violência policial responsável pelas mortes. “Uma das estações ainda postou ‘supostamente baleado’ quando ela mesma flagrou pela câmera pessoas sendo baleadas. Não espero muito da mídia queniana, que não está dando à questão o olhar sério, crítico e analítico que ela merece.”
Envio de tropas para o Haiti
No momento em que todas as atenções no Quênia estavam voltadas para as manifestações contra o governo, o presidente William Ruto concluiu o envio de tropas para a Missão Multinacional no Haiti, aprovada no final do ano passado pelo Conselho de Segurança da ONU e liderada pelo Quênia. O envio de tropas quenianas para a missão enfrenta também a resistência dos movimentos populars do país.
Os movimentos sociais e populares ligados à ALBA Movimientos e a Assembleia Internacional dos Povos (AIP) divulgaram na terça-feira (25) um comunicado onde rejeitam a chegada de “uma nova intervenção militar estrangeira apoiada pela ONU em cumplicidade com os Estados Unidos”.
“Pelo menos 1 mil policiais chegam ao Haiti para supostamente acabar com a violência das gangues. O destacamento policial foi aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU e terá como consequências a desestabilização e o prolongamento da crise haitiana. Pedimos à comunidade internacional que rejeite qualquer tipo de interferência estrangeira no Haiti e que se respeite a autodeterminação do povo haitiano”, diz o comunicado.