Ao conhecido geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904) é atribuída a semeadura da geopolítica como a conhecemos hoje: uma seara de análises, reflexões e diretrizes para a ação política de Estados e governos, ainda que o termo “geopolítica” nunca tenha aparecido em seus escritos. A proposição do nome coube a um dos inúmeros alunos e discípulos de Ratzel, o sueco Rudolf Kjellén (1864-1922). Se uma busca pelas origens etimológicas estivesse em questão, sequer precisaríamos ir muito longe, já que no texto em que pela primeira vez fala em “geopolítica” (o artigo Estudos sobre os limites políticos da Suécia, de 1899, publicado na revista conservadora Ymer, v. 3, p. 283-331), Kjéllen não só faz referência a uma das mais famosas obras de Ratzel (Geografia Política, 1897) como fala sobre “colocar em prática” suas sugestões. Inicialmente uma combinação de termos, a “geopolítica” de Kjéllen é melhor apresentada em seu livro Estado como forma de vida, obra publicada em 1916 e pela qual ficou conhecido.

Discípulos ratzelianos à parte, a paternidade da geopolítica é atribuída a ele não sem motivos. A maioria dos manuais sobre o assunto costumam iniciar por Ratzel, pois seu papel foi fundamental na história da geografia moderna (fundamentalmente europeia) e vai além. História, etnologia e geografia articulam-se a todo tempo em seu pensamento para formar não menos que uma história global da humanidade ou até uma teoria da história.

Boa parte de sua obra foi escrita durante o processo de formação do Estado alemão moderno e especialmente no período bismarckiano de consolidação desse Estado. E a despeito de quaisquer relativizações que são bastante presentes nos estudos sobre Ratzel, não é possível separar por completo seu pensamento de uma certa posição de “conselheiro do príncipe”, embora, justiça seja feita, ele nunca tenha cumprido individualmente nenhuma posição de Estado. Em seu caso, os conselhos vieram em forma de teoria, muitas vezes uma complexa fundamentação teórica do projeto imperial alemão (e falaremos disso ao longo dessa série). Longe de um discurso panfletário vulgar, a obra de Ratzel está atrelada ao desenvolvimento histórico da Alemanha: uma nação em luta para se unificar em seu atraso diante das demais potências europeias, cujo capitalismo já se desenvolvera em imperialismo, e que corriam muito à frente na partilha colonial do mundo, da qual a Alemanha não era mais que uma espectadora em segundo plano.

A disposição dos povos sobre o planeta terra e seu desenvolvimento político, a formação dos Estados, sua expansão e o estabelecimento de fronteiras, a dominação colonial, etc.: todos esses temas e outros vários aparecem em Ratzel. Mas, como dito, não trata-se de um mero autor panfletário, antes o contrário: possui uma obra gigantesca que só pode ser apresentada com muito cuidado, já que várias tentativas de fazê-lo acabaram por enviesá-lo (como é o caso da escola francesa, sua oponente de teto de vidro) e suas reivindicações levaram a caminhos conhecidos (Haushofer e a geopolitik nazista-alemã, por exemplo).

Para tentar entender sua importância e papel na formulação das bases fundamentais da geopolítica, nos últimos tempos me lancei a um estudo mais aprofundado de sua vida e obra. A partir de um extenso roteiro de estudos, do recurso a biografias e aos escritos do próprio Ratzel (a maior parte deles não disponível em português), espero que ajude aqueles que, como eu, estejam interessados no primeiro nome que aparece nos manuais de geopolítica, dos mais vulgares e sintetizados à quase falsificação, aos mais completos e aprofundados. Se o conteúdo não agradar, que este esforço ao menos encurte os caminhos do leitor: a sequência de artigos inaugurada agora serve também como um levantamento bibliográfico cuidadosamente conduzido. Aqui veremos um Ratzel que extrapola as obras pelas quais é mais conhecido, sempre que possível apontando informações relevantes sobre edições, traduções e sobre a disponibilidade do material mencionado.

Por fim, um último aviso: dentre as biografias de Ratzel que pude consultar, a que melhor me serviu (e de onde foram tiradas todas as informações biográficas que constam aqui) foi a Friedrich Ratzel: a biographical memoir and bibliography, publicada em 1961 pela geógrafa britânica Harriet Grace Wanklyn (disponível on-line, em inglês). Sua segunda parte é um riquíssimo levantamento bibliográfico da obra do autor alemão e compila não só seus livros publicados em vida como uma grande variedade de artigos, muitos deles essenciais para entender aspectos de seu pensamento que não são abordados nas obras principais. Sem mais delongas, iniciemos o percurso.

No início, as ciências naturais

Ratzel nasceu em 1844 na cidade alemã de Karlsruhe, capital do Grão-Ducado de Baden, um Estado alemão independente até que, em 1871, a colcha de retalhos germânica foi unificada sob a forma do Império Alemão, com a Prússia à frente. Filho do Kammerdiener do grão-duque, uma espécie de gerente da equipe pessoal, Ratzel muito cedo teve acesso à grande biblioteca do palácio onde o pai trabalhava, estando desde a infância rodeado pelo ambiente político e intelectual da aristocracia do pequeno Estado à margem do rio Reno.

Já aos quinze anos tornou-se aprendiz de um boticário, desempenhando a profissão por quatro anos na Alemanha, dois anos na Suíça e depois novamente na Alemanha. Foi nesse ofício que pela primeira vez teve contato aprofundado com a botânica e a história natural. Aos vinte e um começa a estudar zoologia em Heidelberg, depois em Jena e finalmente em Berlim. Em 1868 termina a tese necessária para concluir sua formação em zoologia, o estudo Contribuições para o estudo anatômico e geral dos Oligochaeta (grupo de animais cujos mais conhecidos são as minhocas).

Seu primeiro livro foi publicado no ano seguinte em Leipzig, na época o maior centro de publicação e venda de livros no mundo. Com o nome Ser e devir do mundo orgânico (disponível on-line, em alemão) é um longo tratado de mais de 500 páginas sobre a história da vida na Terra em termos biológicos e também culturais. O subtítulo da obra, inclusive, a apresenta como “uma história popular da criação”. Já no prefácio (s.p.) ele resume a que se propõe:

“Oferecemos aqui ao público uma representação do ser e do devir do mundo orgânico, baseada nas mais recentes pesquisas. O que é dito neste livro sobre a relação dos organismos com a massa inorgânica, sobre a criação das plantas, dos animais, do ser humano, sobre as provas invocadas por certas teorias da criação, representa em todos os lugares o ponto de vista mais atual da ciência. Mas não quisemos apresentar este ponto de vista como algo acabado, impô-lo como um dogma vazio; ao contrário, tentamos deixar os fatos falarem tanto quanto possível. Deveria desenrolar-se na mente do leitor, em traços breves, o mesmo processo que a ciência da história da criação passou, e ele deveria, por fim, convencer-se do poder dos fatos, concordando plenamente, com pleno entendimento, com as conclusões teóricas que foram colhidas após longo trabalho em nosso tempo.”

Uma vez que a obra jamais fora traduzida para outras línguas, precisei recorrer a uma tradução própria de seu sumário e introdução para conseguir um panorama geral. O que pude encontrar foi um livro dividido em quatro seções ou capítulos englobando desde as diferenças entre seres orgânicos e inorgânicos, passando pela visão geral de todos os organismos vivos até a história da teoria evolutiva da criação de Darwin (avaliando antes as teorias de Cuvier, Lyell, Lamarck e outros autores), as disputas em torno do materialismo e até mesmo a teoria de Kant e Laplace sobre a origem do sistema solar. Ao que parece, essa nada reduzida obra foi a única publicada no período em que as ciências naturais ocupavam o primeiro plano de suas atenções.

Os anos iniciais da vida intelectual de Ratzel são pouco discutidos pelos estudiosos que costumam abordá-lo, e isso realmente faz algum sentido. Não foi como um zoólogo que ele veio a se destacar, mas é digno de nota que, em seu percurso inicial nas ciências naturais, constituiu uma verdadeira apreensão quase enciclopédica de tudo que havia sido desenvolvido até então nesse ramo da ciência europeia, boa parte dela acumulada em anos de incursões e experimentos nas colônias na África e na Ásia, tema do qual falaremos mais à frente. Basta, nesse primeiro momento, que se tome nota de que esse período deixou marcas em tudo que foi produzido ao longo de sua vida, de sua teoria do Estado e dinâmica das populações no globo terrestre às classificações etnográficas dos povos de todo o mundo.

Do jornalismo geográfico ao campo de batalha

Uma vez encerrados seus estudos em zoologia, Ratzel passou a trabalhar com o naturalista francês Charles Martin em uma viagem de campo para o mediterrâneo. Para financiar seus estudos, ofereceu alguns relatos dessa viagem para o Kölnische Zeitung, um famoso jornal de língua alemã publicado diariamente na cidade de Colônia. Nessa mesma época (entre 1869-1870) ele recebe uma proposta de trabalho no Museu de História Natural de Stuttgart, mas declina em favor da proposta de um trabalho permanente como correspondente de viagem do jornal, em nome do qual parte para a Itália. Essas viagens acabam cumprindo um papel primordial: é em campo aberto, como observador e correspondente jornalístico que Ratzel paulatinamente se aproxima da geografia, até que por fim seus escritos deixam o zoólogo em segundo plano, abrindo espaço para o geógrafo que ganhou fama ainda em vida.

Esse “jornalismo geográfico” é atravessado e de certa forma interrompido em 1870 pela crise franco-germânica, que culmina na guerra franco-prussiana e na unificação alemã. É um período que evidencia um Ratzel que em vida nunca se escondeu, mas que geralmente é mencionado apenas de passagem: um ativo defensor do expansionismo alemão, cuja atividade de intelectual público voltou-se para o embate contra aqueles que, na opinião pública, levantaram suas vozes contra o conflito e contra questões caras à disputa, como a anexação da Alsácia-Lorena. Mas mais do que empunhar a pena como arma militante, Ratzel tomou parte também na mais óbvia e produtiva forma de concretização de projetos políticos: a violência dos Estados. No verão de 1870, voluntariou-se para combater na guerra franco-prussiana. Acabou servindo na infantaria de Baden por alguns meses e foi ferido duas vezes, até ser dispensado com condecorações, em razão de um ferimento na cabeça.

Alguns dos seus artigos na imprensa da época podem ser encontrados na seleção Ilhas de felicidade e sonhos, publicada em 1905, um ano após sua morte (disponível on-line, em alemão). Nesses escritos podemos encontrar depoimentos sobre o entusiasmo dos jovens alemães com a guerra, relatos do que viu nos hospitais enquanto tratava seus ferimentos e polêmicas com outras figuras ou veículos de alguma forma críticos aos “interesses alemães” em jogo naquele momento histórico.

De volta às atividades como correspondente do Kölnische Zeitung, Ratzel passou os dois anos seguintes novamente em campo. Em 1871, percorreu o Império Habsburgo escrevendo relatos sobre os Cárpatos (a ala oriental da segunda mais longa cadeia de montanhas da Europa), especialmente sobre a Transilvânia e a Bucovina, e ainda no mesmo ano esteve nas planícies húngaras e em Budapeste. No ano seguinte, 1872, viajou pelos Alpes e pela Itália. Uma seleção de seus artigos de viagem foi publicada por ele em dois volumes com o nome de Dias de viagem de um naturalista. O volume um surgiu em 1873, com o subtítulo Cartas de um zoólogo no Mediterrâneo: cartas do sul da Itália, e o volume dois em 1874, como Descrições da Transilvânia e dos Alpes (disponíveis em um mesmo arquivo on-line, em alemão).

Em exercício semelhante ao que fiz em relação ao seu primeiro livro publicado, traduzi o sumário e prefácio de ambos os volumes. A partir disso pude mapear os temas e direcionar as atenções. São cerca de sessenta textos escritos de 1868 a 1871, relativamente curtos e no estilo de escrita leve pelo qual o jornalismo de Ratzel ficou conhecido na época. No caso do volume um, voltado aos textos da viagem pelo mediterrâneo, o grande assunto é o mar: compilam-se nele escritos sobre a vida marinha, a ligação humana com o mar, o clima mediterrâneo, etc. Algumas exceções à temática geral são dignas de nota, como no caso do artigo Divisão do trabalho, onde, depois de uma pequena introdução sobre a “divisão do trabalho, não só no domínio social, mas também em todos os outros domínios da atividade humana, no grande dos assuntos mundiais e no pequeno de um ramo da economia”, Ratzel fala sobre a possibilidade de encontrar “seus vestígios em todos os lugares onde a vida pulsa”, e para isso recorre a uma longa descrição fisiológica dos órgãos e funcionamento do corpo de animais como ratos, caracois e baleias, atribuindo à natureza certa “divisão do trabalho” na engrenagem da vida.

No volume dois encontram-se desde materiais sobre temas econômicos e matérias primas até descrições do clima e outras características geográficas dos Alpes. Um que foge aos temas gerais e possui importância especial é o texto 1848-1852, escrito em 1871. Nele Ratzel analisa a revolução de 1848 e a reação que se seguiu com as atenções voltadas para os saxões na Transilvânia, cujo direito à autonomia e organização independente foi sufocado pela repressão do tsarismo russo, tropa de choque da reação europeia. Trata-se de um texto interessante para observar seu pangermanismo, característica que lhe acompanha por toda a vida e figura como verdadeiro plano de fundo de todo o conteúdo político de sua obra.

Os dois volumes da variada seleção de textos é apresentada pelo prefácio de Ratzel como feitos não “diretamente para instrução, nem para entretenimento, mas principalmente para inspirar e revitalizar o amor pela natureza”, desejando “ao leitor que se dedica a este livrinho momentos agradáveis de leitura”.

Esse primeiro Ratzel viajante, bem como seus “escritos políticos” durante a guerra franco-prussiana, ainda são objeto de pouca atenção entre os que o estudam. Um mergulho atento nesse material certamente revelaria bastante coisas desconhecidas ao público brasileiro, já que até hoje não contamos com traduções completas sequer de suas obras principais, quem dirá de coletâneas de textos avulsos. Manifesta-se então um problema que é comum ao estudo de qualquer autor estrangeiro: na ausência de traduções em nossa língua, limita-se o público àqueles que podem recorrer a outras traduções ou ao original, abrindo portas para que o único contato de muitos com determinada obra seja a leitura de intérpretes e intermediários.

Observando sua vida em retrospecto, o período que vai dos anos iniciais até a publicação de seus Dias de viagem encerra a era de um Ratzel cuja fama, alcance e objetos de estudo ainda se restringiam às fronteiras europeias e principalmente alemãs, a despeito de exceções pontuais. Mas isso está prestes a mudar: em 1874, ainda como correspondente do Kölnische Zeitung, Ratzel parte para uma viagem aos Estados Unidos, México e outros países da América Central, naquela que se tornou a viagem mais importante de sua vida em termos pessoais, profissionais, políticos e principalmente intelectuais. Para uma dimensão do impacto dessa viagem sobre ele, basta mencionar que foi com base na experiência nos Estados Unidos e no estudo da expansão territorial do país, do genocídio dos povos indígenas, do trato estadunidense para com o vizinho México e principalmente a partir do contato da doutrina americana do destino manifesto que Ratzel elaborou um dos conceitos que mais tarde ganharia contornos muito conhecidos: o conceito de Lebensraum ou espaço vital. Trataremos disso em um próximo escrito.