Na última quinta-feira (20), a presidenta da Câmara dos Deputados do Chile, Karol Cariola, fez comentários sobre o PL 1904, apelidado de “PL do Estupro”, atualmente em discussão no Congresso brasileiro, em entrevista exclusiva a Opera Mundi.

“Retroceder nos direitos das mulheres é sempre uma má notícia. E não é apenas um retrocesso para nós, é um retrocesso para a democracia”, disse a deputada, observando ainda que “quando as democracias tiram direitos, elas retrocedem, quando as democracias dão direitos, elas avançam, e acho que é aí que fica mais claro que essa proposta de perseguir, de criminalizar o aborto ou a interrupção da gravidez no Brasil é uma questão tremendamente preocupante.” Proposto pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o Projeto de Lei 1904/2024 visa equiparar o aborto legal após a 22ª semana de gestação, em casos como estupro e risco à saúde da mãe, ao crime de homicídio. Após ter sua tramitação colocada em regime de urgência num acordo envolvendo o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Arthur Lira (PP-AL), gerou uma onda de manifestações feministas em todo o País, exigindo seu arquivamento.

A presidenta da Câmara Chile esteve no Brasil para participar no Festival de Ideias da Internacional Progressista, realizado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com o tema “poder e prosperidade em um mundo multipolar”. Proveniente do movimento estudantil chileno e ligada à luta feminista, Karol Cariola está em seu terceiro mandato como deputada. Foi eleita presidenta da Câmara dos Deputados chilena em abril deste ano, tornando-se a primeira comunista a ocupar o cargo no país.

Durante sua participação no Festival de Ideias, tratou de temas como o crime organizado – o Chile atualmente vive uma crise de segurança associada à atuação de facções da Venezuela, Peru e Colômbia no país –, do longo percurso do neoliberalismo no Chile, das mudanças trazidas pelas grandes manifestações de 2019 no país e da necessidade de uma maior integração latino-americana.

Um dos temas de que falou durante o debate foi o do crime transnacional, do crime organizado. Como a esquerda pode ter uma posição efetiva de combate neste tema sem cair numa concepção punitivista e sem abrir mão do princípio de que pobreza e crime são temas relacionados?

Acredito que a esquerda tem historicamente levantado bandeiras no sentido de questionar a ordem mundial capitalista e todas as consequências que isso tem também em relação ao imperialismo, e creio que não há consequências mais claras e evidentes do capitalismo e da decomposição que ele gera na sociedade do que as características do crime organizado.

Quando há quadrilhas criminosas transnacionais que se organizam para sequestrar pessoas, cobrar dinheiro pela sua liberdade, estabelecer ações para fortalecer o narcotráfico e, dessa forma, mergulhar consecutivamente os jovens em situações de dependência, justamente para ter o controle sobre eles, e sobre a população como um todo, para reduzir o Estado à sua expressão mínima e assumir o controle territorial; todos esses elementos são típicos da ação do crime organizado. Esses elementos mostram como ele é tremendamente funcional à ordem gerada pelo capitalismo. Não apenas por causa do individualismo, mas também porque coloca os interesses econômicos acima dos direitos humanos e das pessoas. E acho que essa é uma definição muito fundamental que precisa ser levada em consideração quando se trata de estabelecer medidas para enfrentá-lo, que não podem ser apenas medidas estruturais, porque se esperarmos por medidas estruturais, o crime organizado continuará avançando e se fortalecendo.

É preciso haver medidas de curto, médio e longo prazo; e, nesse sentido, provavelmente será inevitável cruzar algumas linhas, que têm a ver com o fortalecimento da persecução penal, ou seja: isso é inevitável, não podemos optar apenas pelo caminho da melhoria das oportunidades e dos direitos se, ao longo do caminho, não formos capazes de coibir imediatamente e em curto prazo o crime organizado e cada uma de suas expressões.

Estou convencida de que outro dos elementos para garantir aos cidadãos a possibilidade de viver uma vida livre – ou seja, poder sair de casa, poder ir ao trabalho e saber que chegará vivo, saber que não será assassinado ou sequestrado –, é entender esses elementos como fundamentais do direito de viver em paz. E, nesse sentido, uma maneira de estabelecer caminhos para eles é por meio de relações multilaterais de integração entre os diferentes países, especialmente na América Latina.

Infelizmente, os mecanismos de migração irregular, por exemplo, têm sido usados como mais uma ferramenta pelo crime organizado para o tráfico de pessoas ou para o abuso, no final, de pessoas que, na necessidade, muitas vezes acabam caindo nas garras desses criminosos. E acredito que esses são elementos que temos de ser capazes de interceptar, justamente porque entre os principais valores da esquerda ou do progressismo está a valorização da vida, dos seres humanos, das pessoas, por colocar os direitos humanos, os direitos das pessoas, acima dos direitos do capital e, mais do que os direitos do capital, dos interesses do capital e do valor do dinheiro.

E eu acredito que a integração, a criação de mecanismos de colaboração, o estabelecimento de mecanismos conjuntos de controle de fronteiras, o estabelecimento de mecanismos de regulação a partir da perspectiva dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, a criação de uma ação de persecução conjunta, de uma estratégia conjunta para acabar com o crime organizado e o tráfico de drogas, me parecem ser uma fórmula que podemos usar, explorar e impulsionar a partir do progressismo, a partir da esquerda, para que a América Latina e o mundo inteiro, entre os países que querem colaborar, possam se integrar em uma batalha comum contra aqueles que estão causando danos à sociedade.

Um outro tema do qual tratou foi da chegada do neoliberalismo no Chile. Isso ocorreu por meio de um golpe militar que foi um dos piores, um dos mais bárbaros, da América Latina. Queria uma avaliação sua sobre o tema dos militares hoje na América Latina e no Chile em específico, porque tivemos notícias de militares chilenos fazendo pronunciamentos, por exemplo, durante o ciclo de grandes manifestações no país em 2019. Crê que esta é uma ferramenta disponível à extrema-direita hoje?

Acho que a extrema-direita deve ser lida de uma maneira muito particular. Dentro da extrema-direita, surgiram diferentes visões políticas e ideológicas que não necessariamente coincidem com as expressões comuns do neoliberalismo como tal. É preciso ter cuidado com isso. Há uma linha de direita que se define como liberal, mas não neoliberal, e que, de uma perspectiva liberal, mesmo do ponto de vista econômico, vem promovendo o nacionalismo, por exemplo. Portanto, há diferentes vertentes dentro da extrema-direita, não devemos considerá-la como um todo global, da mesma forma que a esquerda, há diferentes visões e construções ideológicas.

No entanto, eu acho que sem dúvida nenhuma para para a direita em geral – a direita neoliberal, a direita que promove o capitalismo, os defensores da ordem atual –, eu acho que é mais a direita tradicional que a gente conhece historicamente que está mais afinada com essa visão de construção [militar], creio que a nova direita hoje aponta inclusive para outros mecanismos e modelos que a gente precisa conhecer e explorar muito mais; não as categorizaria tão facilmente naquilo que a gente conhece tradicionalmente, são diferentes.

E, nesse sentido, tenho a impressão de que o que aconteceu, a partir da experiência chilena, é a selvageria neoliberal, do ponto de vista de como eles mostram as piores facetas do capitalismo na desigualdade na distribuição de recursos; no abuso da exploração dos trabalhadores; na privatização dos direitos mais fundamentais; com esses elementos todos convivemos por muitos anos.

E, é claro, no Chile houve uma ditadura brutal, uma ditadura sangrenta que violou os direitos humanos, que assassinou, que desapareceu, que perseguiu aqueles que pensavam diferente do regime da época com um objetivo muito claro, que era instalar o neoliberalismo como um mecanismo de laboratório ou uma amostra para a América Latina e o mundo das consequências que isso poderia ter. E foi bem-sucedido em algumas áreas porque, de fato, gerou crescimento econômico, abertura econômica para o mundo e uma série de coisas na esfera macroeconômica, mas, no entanto, deixou sua marca na pequena economia familiar, na economia familiar camponesa e em todas as coisas que, em última análise, têm a ver com detalhes e, além disso, esse crescimento econômico em termos globais também gerou outras consequências relacionadas aos direitos sociais, à mercantilização de tudo; em outras palavras, é isso que o capitalismo é no final das contas, e sua expressão neoliberal é uma expressão ainda mais selvagem e desregulada disso.

Portanto, acho que sabemos muito bem quais são essas consequências, nós as enfrentamos, o movimento social tem sido o principal oponente à expressão do neoliberalismo, conseguimos conter algumas coisas, mas ainda não conseguimos gerar modificações estruturais. E eu acredito que é muito difícil desestruturar um sistema que atua em rede, que atua de forma coordenada no mundo, em um mundo globalizado, também interconectado, cada vez mais conectado no imediatismo: é muito difícil fazer isso entre nós, que acreditamos em uma construção diferente, baseada na solidariedade, na garantia de direitos, baseada na proteção dos seres humanos como a primeira prioridade na construção de uma sociedade em uma relação amigável com o meio ambiente. Se não fizermos isso em rede, será difícil construirmos uma alternativa ao que o neoliberalismo e o capitalismo geraram no mundo.

É por isso que deposito muita esperança em algumas das lutas que se expressaram nos últimos anos, como as expressões do feminismo, o papel das mulheres, que encarnaram e experimentaram as consequências mais brutais do neoliberalismo, porque um dos principais aliados do neoliberalismo foi o patriarcado, que, além de gerar diferenças de classe, gerou diferenças e discriminação e violência de gênero em suas expressões mais brutais; acredito que é aí que começa a surgir uma ação e uma capacidade de coordenação internacional.

Sou uma das fundadoras da Internacional Feminista, que tem buscado construir um espaço para uma rede de coordenação em termos da construção de um projeto comum que vá além da busca pela igualdade de oportunidades e de gênero, mas que também busque a construção de uma ordem econômica, social e política que gere igualdade entre os seres humanos, entre as pessoas, que não busque apenas a igualdade das mulheres em relação ao outro gênero, mas também o respeito e a igualdade de oportunidades para as pessoas em geral, inclusive para os homens, e que veja a convivência dos seres humanos com o planeta de uma forma diferente.

Vejo diferentes oportunidades, mas creio que o movimento social, o movimento sindical, o movimento estudantil, o movimento de mulheres e as diferentes expressões da sociedade que hoje têm buscado mecanismos de coordenação também podem se unir em uma visão comum e, esperamos que também possamos construir um projeto comum que seja sustentável e viável ao longo do tempo.

Precisamente o tema do feminismo foi um dos que você classificou como uma questão central, fundamental, para as esquerdas e a construção de um mundo novo. Nas últimas semanas tivemos no Brasil uma discussão sobre um projeto de lei, o PL1904…

Sim…

Gostaria de falar sobre isso, enviar uma mensagem ao movimento das mulheres?

Basicamente eu gostaria de dizer que lamento muito que em diferentes partes do mundo se esteja retrocedendo nos direitos que as mulheres conquistaram.

Não tem sido fácil para nós conquistar um espaço na sociedade, pois viemos de sociedades que durante anos impediram as mulheres de participar da política, de ter o direito de votar – só conseguimos isso em meados do século passado ou no final do século passado em alguns lugares; em outros ainda mais recentemente. Nosso direito de participar, até mesmo de ter acesso à educação, foi algo que tivemos de conquistar com muito esforço, rompendo, superando linhas de ordem que eram tremendamente injustas.

Portanto, retroceder nos direitos das mulheres é sempre uma má notícia. E não é apenas um retrocesso para nós, é um retrocesso para a democracia. Quando as democracias tiram direitos, elas retrocedem, quando as democracias dão direitos, elas avançam, e acho que é aí que fica mais claro que essa proposta de perseguir, de criminalizar o aborto ou a interrupção da gravidez no Brasil é uma questão tremendamente preocupante.

Fomos informados disso por diferentes vozes, estivemos em contato com Manuela D’Ávila, que nos falou sobre isso e tem ativado redes internacionais em apoio à luta do movimento feminista e particularmente das mulheres no Brasil diante de algo que é claramente inaceitável e que esperamos que possa ser impedido.

Entendemos que há toda uma discussão em curso neste momento, a solidariedade internacional de todas as mulheres que querem mais direitos e não menos, e não retroceder, em última análise, também envolve a defesa da democracia, e eu espero que essa não seja apenas uma luta das mulheres, mas de todas as pessoas, homens, mulheres, pessoas não-binárias, enfim: pessoas que, independentemente de sua identidade de gênero, acreditam que a defesa da democracia envolve a garantia dos direitos que conquistamos. Acho que é aí que deve estar o foco principal desse debate e dessa discussão.