Fui consumido por Void Stranger no último mês de 2023 e comecei esse ano descascando e devorando ZeroRanger, então precisei exorcizar alguns pensamentos sobre esses jogos que ficaram fervilhando na minha cabeça com o texto (ão, escrevi mais do que deveria) que segue. A intenção é ser, além de uma recomendação, um encorajamento, pois, apesar de ambos terem sido sucessos consideráveis em seus nichos, ainda percebo muito receio em dar uma chance a qualquer um dos dois em se tratando dos gêneros - um sokoban-like e um shmup - somando o fato que quem jogou costuma apresentar e discutir esses jogos por seus game designs abrasivos, o que termina dissuadindo quem está de fora. Mas, embora sim esse aspecto esteja presente, eu acredito que também possam ser boas introduções a quem pouco ou nunca jogou algo do tipo, bem como terem uns dos mais únicos e interessantes designs de qualquer coisa que já joguei, e quero te convencer a dar uma chance com o relato de minha experiência, livre de spoilers!

Essa é uma das imagens que eu mais gosto da internet. Um relato bonitinho de alguém solitário, que comprou um vinil da banda japonesa de jazz fusion Casiopea e se surpreendeu com a dedicação gentil do vendedor em se preocupar com a chegada do produto e de incluir um origami e um pacotinho de chá. Mas é só um pequeno detalhe que eu queria destacar:

“Eu pensei que não gostava de chá antes disso”.

Ficou comigo porque eu também nunca curti um chá! Talvez seja questão de estar aberto a dar uma chance, num momento certo para isso como a pessoa do meme, ou talvez seja o caso de se tornar um estranho de si mesmo como alguns diriam…

Void Stranger

Eu nunca chegaria perto de um jogo como Void Stranger, já me frustrei bastante com jogos de puzzle antes, não é um gênero que estou indo atrás. Ainda mais especificamente sendo descrito como um sokoban-like (ou, jogo de empurrar caixinha/pedrinha) com visuais de GameBoy, o que me remete imediatamente aos puzzles ocasionais de um Pokémon Red ou de um Zeldinha 2D e similares, que já me deixaram desgraçado da cabeça. Enfrentar um jogo só disso seria fora de cogitação, passei distante de A Monster’s Expedition e Patrick’s Parabox, apesar de admirá-los de longe. Cheguei a arriscar o Baba is You pela novidade da coisa e por acreditar que não enfrentaria tanto sokoban, mas ainda assim aquele jogo tem muito do elemento clássico de empurrar coisinhas e dá pra ficar bem empacado cedo, como eu fiquei.

(Quer mais exemplos? Sofri MUITO com os puzzles das dungeons de Crosscode, larguei Machinarium por conta de um puzzle que é gerado aleatoriamente e não teria como achar uma resposta certa em guias, passei sufoco com os puzzles “bestinhas” de Carto!!!😭)

Só que uma recomendação efusiva e a promessa de um mistério maior para se solucionar - e, possivelmente, um metajogo? - além de comparações com Outer Wilds e Tunic, me deixaram intrigado o suficiente para querer dar uma chance. O maior receio mesmo foi ler de mais de uma fonte que esse seria o “La Mulana dos Sokobans”, o jogo infamemente conhecido por ferrar o jogador. Ver o trailer de lançamento, por fim, acabou afastando as dúvidas, fiquei encantado com a estética de GameBoy clássico e com a sugestão de segredos a serem descobertos:

https://youtu.be/HSkOdL2zJM4

Dei uma chance.

Felizmente, de início, Void Stranger faz um belo trabalho em te climatizar com o tipo de puzzle que você vai enfrentar e desgraçar sua cabeça por horas. Há ainda o alento de, por ter o visual inspirado em jogos de GameBoy, limitar as extensões dos puzzles a uma única tela, então nunca chegaria na largura de um puzzle de A Monster’s Expedition ou na recursividade de Patrick’s Parabox. Mas também o jogo não se deixa ficar maçante, há novas mecânicas e desafios sendo apresentados suavemente a cada determinada sequência, então eu realmente senti uma curva de aprendizado leniente. Dito isso, as coisas nunca ficam triviais e eu bati muita cabeça pra resolver alguns dos puzzles.

O que me fazia querer continuar prosseguindo, porém, era a promessa do mistério e uma historinha charmosa sendo contada de forma linear em alguns momentos. O jogo te deixa curioso muito rápido. Apesar de tudo, não engatei tanto de primeira, ainda no aguardo do que o faria tão único. Fiquei frustrado com alguns puzzles… passei uns dias sem abrir… voltei e fui tomando gosto por outros tipos de puzzles e, principalmente, estava curtindo DEMAIS a trilha sonora:

https://eebrozgi.bandcamp.com/track/lax-lullaby

Mas insisti.

Há um momento de “conclusão”, presumidamente o que seria o “final ruim”, enquanto outros jogos usariam isso de desculpa para fazer algo chocho ou agridoce, Void Stranger entrega uma sequência bem especial e um incentivo para continuar, quase uma provocação.

Persisti, e acabei descobrindo um dos meus jogos favoritos. Nunca imaginei que eu estaria até os próprios puzzles apreciando, me surpreendendo com as formas de resolver e em como vão se reinventando. Quando achei que não haveria mais como fazer algo novo no escopo de telinha de GameBoy e de movimentação por grid, o jogo me provava errado. Isso que estou deixando de falar do grande mistério em seu macro e de como você vai desvendando, mas fique certo que há muitas surpresas!

Se você já está convencido, só vai!

Aqui já quero falar em termos mais vagos do que, sobretudo, mais me fascinou. O propósito é recomendar o jogo para além de um simples “confia”, só que também preservar a experiência e tentar não influenciar uma forma de abordagem.

Pois é exatamente essa palavra, há muitas formas de abordar e desvendar o que o jogo tem a oferecer. A impressão que eu tive é que o design pouco quer curar sua experiência, preferindo te deixar encontrar as ferramentas e interpretar como usá-las (ou deixar para que o acaso faça isso). De verdade, parece mais um diálogo com o próprio game designer, em que há proposições implícitas sendo feitas a você (por que essa quantidade? por que esse efeito? por que esse formato?), bem como você pode se adiantar a essas proposições, e a forma de responder pode alterar radicalmente como você acha que o jogo funciona. Você é convidado a entender e participar do design a partir de suas próprias conclusões de como o jogo opera.

Não é por acaso que a mecânica principal não é nem mostrada no trailer, pois isso pode afetar como você aborda uma das primeiras salas. Além disso, vários elementos são propositalmente ocultados e tudo vai depender de sua abordagem. Teimosia, insistência, curiosidade e experimentação são cruciais para prosseguir.

É diferente do design de Tunic e Outer Wilds, que foram comparados, pois nesses jogos ainda há uma mínima tutorialização para te acomodar numa lógica na qual os mistérios serão descobertos. Void Stranger segue caminhos bem mais obtusos, e isso pode criar situações igualmente frustrantes e interessantes. Nem toda procura ou experimento se revelará frutífera, mas se você desfruta do processo de descobrimento será um prato cheio, principalmente quando cada elemento aparentemente díspar começa a fazer sentido.

A essa altura você pode estar preocupado em quantas vezes eu falei de FRUSTRAÇÃO… E, de fato, não quero esconder nada, Void Stranger pode ser muito frustrante. Em um certo momento, eu fiz uma descoberta, mas paguei um preço caro. Dei uma desanimada por alguns dias, voltei com o conhecimento adquirido e desencadeei outras descobertas. Enquanto o jogo não chega no nível de um La Mulana, eu entendi melhor a comparação, há alguns momentos especialmente sacanas.

Mas SEMPRE há métodos, outras formas de abordagem e de aliviar o processo. Deixei de passar por certos sufocos que vi outros passarem, e dá pra passar bem menos do que eu passei. Os desenvolvedores mesmo, na descrição da página da Steam, incentivam fazer pausas (e há sugestões de pausas no próprio jogo) e pedir por ajuda, quando isso não funcionar:

Eu olhei algumas das soluções quando estava completamente exaurido, os guias da Steam oferecem soluções individuais de puzzles (descritivo ou, se preferir, com vídeos) sem entrar nos grandes spoilers e dá pra usá-los como um “empurrãozinho”, pegar a ideia de como começar um puzzle e seguir dali. A única recomendação que eu deixo aqui é para que você tente resolver o mistério central sozinho, se chegar num ponto que estiver sem ideias de como prosseguir, em último recurso, sugiro usar esse excelente guia da sylvie, que vai gradando em que estágio de descoberta você pode estar e dá leves dicas para te apontar numa direção, antes da solução.

Outra dica valiosa é anotar tudo que você crê que possa ser interessante. Printscreen serve, mas me arrependo de também não ter usado o bom e velho bloco de notas ou mesmo papel e lápis, pois minhas capturas de tela ficaram uma bagunça para procurar depois.

Por fim, em minha experiência, toda frustração contribuiu em descobrir uma das estruturas de design mais únicas e interessantes que já vi num videogame, num gênero que eu nunca pensaria em encostar. Depois de terminado, foi muito bom ler os relatos de outras pessoas e ver as diferentes formas de descobertas, em especial esse relato bem extenso da Lena Raine. Enquanto há um jeito mais eficiente de fazer tudo, você provavelmente não irá encontrá-lo de primeira. Fiquei feliz com meu próprio caminho, ainda que tenha sido muito redundante - só que foi necessário pra finalmente ter um estalo.

Minha nota para Void Stranger é um chá preto de 10.

Caso esse relato tenha atiçado a curiosidade, então fica aqui um apelo para provar também. Agora se você tem um ÓDIO VISCERAL por esse tipo de puzzle (ficou traumatizado pelos puzzles do esconderijo da Equipe Rocket ou de algum ginásio no Pokémon Red ou algo assim), não recomendo mesmo, pois o momento a momento ainda é de muitos, muitos puzzles. Tendo um mínimo de tolerância, como eu tinha quando comecei a jogar, dá uma chance, você pode descobrir um jogo absolutamente fascinante.

Se nada te apeteceu, fica por aí ainda, pois vou falar de…

ZeroRanger

Quando eu finalmente julguei ter terminado tudo de Void Stranger, ou pelo menos o que eu consegui encontrar, aí sim fui dar uma pesquisada e ainda me surpreendi com uma ou outra coisinha que tinha perdido - mas que nunca chegaria lá sozinho mesmo. Mas mais do que isso eu já estava paquerando o jogo anterior do estúdio: ZeroRanger.

Um shmup (ou jogo de navinha)… Outro tipo de gênero que sempre me pareceu IMPENETRÁVEL… eu já estava muito curioso em conferir se a sensibilidade idiossincrática de design da System Erasure estaria também presente nesse… não tem como me fazerem tomar gosto por outro estilo completamente diferente, certo?!?

https://youtu.be/CSO3jV0Gz_0

Aconteceu de novo.

Foi de fato a melhor forma de ingressar nos shmups, como eu já tinha visto vários veteranos do gênero indicarem. ZeroRanger já tem uma certa reputação na cena indie, recentemente fez cinco ano de lançamento (os criadores só não conseguiram fazer uma comemoração apropriada, pois estavam completamente exaustos do lançamento de Void Stranger) e até já figurou em vídeo do videogamedunkey, o que deu uma alavancada. Uma descrição comum que vejo por aí é que seria “o Undertale dos shmups”.

Apesar de ser um jogo de navinha, a jornada de ZeroRanger é bem menos turbulenta que a de Void Stranger, no sentido que o jogo está constantemente incentivando sua progressão. Seguindo uma moldura de arcade, as coisas acontecem MUITO rápido e com poucos minutos você vai se deparar na tela de derrota e colocando seu nome no ranking de pontuação. Mas a comunicação aqui é explícita e diretamente com você, há palavras de encorajamento, dicas e recompensas para te fazer continuar.

Precisei de um tempinho para acostumar os olhos em acompanhar os tiros inimigos junto com a rolagem vertical, e também poder identificar os padrões mais elaborados. Consegui completar um primeiro “ciclo” do jogo, mas já começava a vislumbrar a chegada de um teto em que eu iria bater e parar de vez, sem habilidade pra continuar. Quando chegou, eu me adaptei e insisti um pouco e me surpreendi em conseguir superá-lo. Já estava crente e resignado que uma hora não teria como, pois as coisas vão ficando progressivamente bem, bem difíceis. Só que eu vou superando… e superando…

O momento que o jogo tira as rodinhas da minha bicicleta, eu já estou investido demais, já cheguei até ali!!! Já superei outras coisas que pareciam piores!!! “Quem diabos você pensa que eu sou?!?!?!??!”

Novamente, a trilha sonora foi catalisadora em enriquecer a experiência, sendo bem mais energética aqui, pra te continuar empolgando enquanto você já está na trigésima tentativa do mesmo estágio, e funciona demais pra mim:

https://eebrozgi.bandcamp.com/track/the-sea-has-returned-2

Fiquei imensamente satisfeito do que eu consegui completar do jogo, praticamente “terminei”, faltando só uma última tarefa de que ainda me falta fortitude mental quando vi no que consistia (um dia…). Acho que o mais impressionante que o jogo fez foi, sutilmente, ter me colocado na mentalidade de 1CC (em que você zera sem usar um único continue, por isso que “1 Credit Clear”), típica dos shmups. Minha melhora era perceptível nos estágios mais avançados e dava aquela coceira de começar do início e tentar de uma tacada só…

Mesmo sendo uma experiência completamente diferente de Void Stranger, a filosofia de design e estrutura comunicativa da System Erasure está presente aqui de sua própria forma: o jogo também te deixa interpretar as ferramentas e métodos de abordagem do seu jeito para prosseguir - aqui sendo mais sobre performance do que experimentação. A maior diferença, como dito antes, é que a comunicação se dá de forma bem mais direta.

Fui pesquisar sobre o jogo e achei interessante descobrir que ZeroRanger passou por várias iterações até chegar na versão final, que de fato consegue acomodar quem nunca jogou nada do gênero. Até antes mesmo de chegar na Steam, a System Erasure passou por um longo período desenvolvendo o que seria seu jogo de estreia comercial, sendo inicialmente divulgado sob o título de “FINALBOSS” em fóruns dedicados à shmups, lá nos idos de 2009. Aliás, importante dizer que a demo na Steam não reflete o estado final do jogo, que conta com mais opções para você se adaptar à dificuldade, mas é uma boa amostra da jogabilidade.

E agora eu estou até empolgado em conferir outros shmups como Drainus e Dimahoo, que a System Erasure citou como influência para a própria abertura de ZeroRanger, olha como é estiloso.

Minha nota para ZeroRanger é um chá de laranja de 10.

Pequeno bônus: sempre gostei dessa tirinha do @Bunnygirlbutts e, mesmo não me vendo chegar nesse nível, eu entendi melhor o sentimento:

Por mais “Dias de Céu Azul”

Espero que um desses tenha chamado atenção, foram duas das experiências mais instigantes em jogos que já tive. Embora tenha curtido mais a jornada críptica de Void Stranger, ainda assim acho tão interessante que a System Erasure tenha feito coisas tão diferentes, quase completamente opostos. Simplesmente ir de um jogo de navinha frenética para um jogo bem cabeçudo de empurrar pedrinha! (Inclusive, achei bonitinho ler algumas reviews no Steam de pessoas tão apaixonadas por ZeroRanger que não pensaram duas vezes quando o estúdio lançou o novo jogo: “jogo qualquer coisa que fizerem agora”).

No fim das contas, ambos me pareceram como diálogos com seus criadores, em que a linguagem comum que adquirimos vindo de outros jogos, termos como vidas, progresso, (ciclos de) repetição, são utilizados e explorados de formas interessantes para comunicar o design. No próprio Void Stranger, comunicação é o tema central, implicitamente e até deixado explícito em um único momentinho especial. Notar uma sensibilidade muito particular, uma voz estranha muito única, foi fascinante.

Outro aspecto que reflete essa sensibilidade são as conquistas desses jogos, ou melhor, uma única conquista para cada jogo. Quase como quisesse que você continue explorando/investigando por sua própria curiosidade, desse um voto de confiança de que há mais coisas para desvendar.

Poderia dedicar mais alguns parágrafos para falar sobre os finlandeses da System Erasure (absurdo que sejam apenas duas pessoas! Uma encarregada de compor e programar e a outra pela história e arte, os dois dividem o game design), a origem do estúdio e suas influências, só que é melhor ouvir dos próprios criadores, essa entrevista aqui é bem esclarecedora. Não sei a intenção deles com os próximos jogos no futuro, se é continuar nessa de tornar gêneros de nicho aproximáveis e fazer coisas interessantes estruturalmente, mas o shmup parece ser mesmo o gênero de paixão da dupla, e já tinham comentado que iriam revisitá-lo. Só sei que eu também jogo qualquer coisa que fizerem agora (e espero ouvir mais versões de “Sky Blue Days”, a assinatura musical do compositor presente nos dois jogos).

Independente se te interessei ou não por esses jogos em específico, que esse relato tenha pelo menos revigorado a tentar outros gêneros, tipos e estéticas de jogos, antes de decidir que a experiência não é para você. Não há garantia de nada - continuo sem gostar de chá, para ser sincero! - mas quem sabe, você pode se surpreender descobrindo conversas interessantes com quem lhe parecia estranho.

Fica à vontade pra comentar aqui se já tiver jogado, relatar da sua experiência e processo de descoberta, expandir sobre os temas (e há ainda outras conversas que esses jogos podem suscitar: a iconografia budista de ZeroRanger, o valor do game design antagonista de Void Stranger…) ou mesmo se estiver precisando de ajuda pra prosseguir!

  • colares
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    5 months ago

    Coloquei ambos na minha wishlist pro futuro. Ótimo texto!

    • a_carrancaOP
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      3
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      5 months ago

      Massa!!! ZeroRanger tem uma demo na steam, só como amostra do jogo, mas o completo tem mais opções pra se adaptar!! 😁