Em maio, com as eleições europeias chegando, Madri acolheu dois eventos organizados pela ultradireita. Um, realizado no palácio de Vistalegre, Madrid Europa Viva 24, organizado por Vox e os Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), teve uma ampla repercussão midiática. O líder da extrema direita espanhola, Santiago Abascal, reuniu em um mesmo cenário políticos mundiais afins a suas ideias: o presidente argentino, Javier Milei; o primeiro-ministro da Hungria, Víkto Orbán; o ex primeiro ministro polonês, Mateusz Morawiecki; e a presidenta do Governo italiano Giorgia Meloni, entre outros.

A outra atividade, quatro dias mais tarde, aconteceu no hotel Intercontinental Madrid. O Fórum Europeu da Liberdade não contou com nenhum líder mundial. Tampouco com câmeras de televisão. Seus expoentes, desconhecidos da opinião pública, foram empresários, economistas e diretores de organizações e associações ligadas ao ultraliberalismo, lobistas, em sua maioria, das formações que participaram do primeiro evento.

O organizador deste fórum foi a Atlas Network, uma associação global que aglutina dezenas de think tanks libertários, com muita influência nos Estados Unidos e na América Latina, que, em silêncio, começa a abrir suas asas sobre a Europa ante o auge e consolidação de partidos ultraconservadores.

“Ambos os acontecimentos são um símbolo de uma extrema-direita em ascenso na Europa em nível eleitoral, mas também — e talvez igualmente importante — da perspectiva da ‘batalha de ideias’”, advertem os pesquisadores franceses Lora Verheecke e Olivier Petitjean, integrantes do Observatório Multinacional, um laboratório de controle corporativo, autores de um informe que traça uma bem documentada radiografia desta organização.

Atrás da Atlas Network, revela a investigação, encontram-se multimilionários e fundações de direita como a Fundação Koch, a Heritage Foundation e Templeton, assim como grandes corporações de setores como o petróleo, o tabaco e o setor farmacêutico. A difusão do negacionismo climático e a instalação no debate público de uma agenda contra as políticas verdes são dois objetivos centrais desta organização.

“A Rede Atlas apoia, nutre e promove seus sócios em toda a Europa. Onde quer que se sinta sua influência, promove uma série de políticas de ultra livre mercado que inevitavelmente implicam cortes de impostos para os ricos, cortes do gasto público, desregulamentação massiva e oposição à justiça climática, respaldados por financiadores com grandes recursos, mas em sua maioria ocultos. As políticas que promove na Europa não são uma exceção e refletem uma aliança similar entre políticas neoliberais extremas e causas conservadoras radicais, como se vê nos Estados Unidos”, explicam os pesquisadores.

Na península ibérica, conta o jornalista Danilo Albín, a rede Atlas Network encontrou “espelhos em que se olhar”: o ex presidente José María Aznar e Isabel Díaz Ayuso

Os tentáculos desta rede já operam na Espanha. O Fórum Europeu da Liberdade foi coorganizado pela Fundação para o Avanço da Liberdade (Fundalib). Em 2019, esta organização fez uma aliança com outro think tank espanhol, o Instituto Juan de Mariana (JMI), também sócio da Rede Atlas, descrita como “o epicentro do obstrucionismo climático no sul da Europa”.

Na península ibérica, conta o jornalista Danilo Albín, de Público, a rede Atlas Network encontrou “espelhos em que se olhar”: o ex-presidente José María Aznar e a presidenta da Comunidade de Madri, Isabel Díaz Ayuso. Ambos participaram de eventos organizados por este lobby na América Latina. Ayuso, por exemplo, participou em 2021 de conferências patrocinadas por membros de Atlas Network no Chile e no Equador, nos quais criticou as “falsas bandeiras feministas que não são feminismo” e enalteceu seu slogan “comunismo ou liberdade”.

Desregulamentar a Europa

Fundada em 1981 pelo empresário britânico de fábricas de baterias Antony Fisher, a Atlas Network pretende cobrir o mundo com think tanks libertários, inspirado no Instituto de Assuntos Econômicos (IAE) no Reino Unido, que contribuiu para a vitória de Margaret Thatcher. Segundo seu informe anual de 2023, conta com 589 sócios em 103 países e um orçamento de 28 milhões de dólares.

Não é coincidência, explica-se na pesquisa, que este fórum esteja “tão ativo” na Europa. Porque, embora a União Europeia sempre tenha se baseado nos princípios do livre comércio, “também foi fonte de importantes regulamentações em muitas áreas, que os libertários sempre desprezaram”.

“Com o ascenso da extrema-direita em toda a Europa e a eleição de líderes que simpatizam com suas ideias em vários países, como Itália e os Países Baixos recentemente, veem uma oportunidade para impulsionar a Europa para políticas ainda mais desregulamentadoras e menos protetoras”, enfatizam os autores.

A capital da Espanha é hoje “um epicentro desta batalha de ideias”, o que reforça a ideia de Madri como a nova Miami, “um ponto de encontro libertário que une Europa, EUA e América Latina”, diz Guillermo Fernández

Em Bruxelas, Atlas Network tem como sócios influentes e organizações ultraconservadoras como o Centro de Informação sobre Política Europeia (Epicenter), uma fonte de consulta de muitos meios de comunicação. Todos os anos, publica uma classificação dos chamados “Estados-babás”, um ranking que denuncia os países que “restringem” a liberdade individual de seus cidadãos, regulando, por exemplo, o álcool e o fumo. Em 2023, este lobby considerou ter chegado a 250 milhões de cidadãos europeus e ter sido mencionado mais de 300 vezes na mídia.

Outro aliado é Consumer Choice Center (CCC), um think tank que opera a favor da agroindústria. Sua cara visível na Europa, o empresário Bill Wirtz, muito ativo em redes sociais, descreve os ecologistas como “teóricos da conspiração”. “Quando Bill Wirtz entra no twitter, produz um podcast ou participa de debates, é considerado um simples consumidor. Isto permite que mensagens idênticas às da indústria se repitam por meio de canais “não comerciais”, criando o tipo de câmara de eco aparentemente independente que é uma característica chave do enfoque de Atlas Network”, afirma esta investigação.

A CCC lançou meses atrás uma campanha e um site para “ajudar os eleitores europeus a navegarem pelo complexo panorama dos candidatos políticos que competem por assentos no Parlamento Europeu em 2024”. No item sobre preços dos combustíveis e mudança climática, só uma resposta dá 10 pontos: “Reduzir os impostos dos combustíveis”. Aumentar estes impostos ou promover o transporte público ecológico e alternativo não dá nenhum ponto aos candidatos.

Em questões climáticas, o Greenpeace denunciou em 2010 esta rede por ter financiado uma multidão de organizações que agem como uma “câmara de eco” para amplificar artificialmente mensagens que sabotam a ação climática e a credibilidade da investigação científica sobre o tema. Para os analistas Lora Verheecke e Olivier Petitjean, com o ascenso dos partidos de extrema-direita em toda a Europa, “há razões para temer que depois das eleições de junho a UE se incline ainda mais para uma agenda política conservadora, anticlimática e antirregulamentação”. Neste sentido, a Rede Atlas, em seu afã de fazer retroceder a justiça social e as políticas ambientais progressistas, “parece estar buscando novos aliados e mais portas abertas na UE”.

“Com o Fórum Europa Liberdade realizado recentemente em Madri, onde estiveram representadas 191 organizações de 47 países, demonstrou sua crescente força na Europa e também em Bruxelas. Depois da Argentina, do Reino Unido e muitos outros países, agora tem a UE na mira”, concluem.

França, a prova piloto

Por meio de cinco poderosos sócios, Altas Network influi há mais de uma década no mapa político francês, sobretudo por sua alta visibilidade nos meios de comunicação. Os sócios da rede são: a Fundação Ifrap, Taxpayers Associés, IREF, o Instituto Molinari e IFP. “Todos preferem permanecer discretos sobre seus vínculos com a rede estadunidense. Todos eles têm muitos vínculos entre si e com empresários e pessoas ricas, assim como com todos os matizes da direita e da extrema-direita francesas”, explica a pesquisa deste laboratório gaulês.

Ifrap, por exemplo, foi fundado graças a uma importante doação da Fundação Heritage, muito próxima da extrema-direita de Marine Le Pen. Sua porta-voz, Agnès Verdier-Molinié, formou-se em vários think tanks estadunidenses, todos satélites de Atlas Network.

Já o Instituto de Pesquisas Econômicas e Fiscais (Iref) ou o Instituto Molinari alimentam constantemente “a câmara de ressonância libertária nos meios de comunicação com ideias similares: críticas aos impostos e diatribes contra um suposto ‘ódio aos ricos’, oposição às políticas climáticas ou apelos à privatização dos serviços públicos”. Frequentemente, nos debates midiáticos, “apresentam-se como especialistas independentes e apolíticos”.

“Estamos falando de multinacionais que investem uma grande quantidade de dinheiro para que as democracias não limitem seus lucros ainda que isto implique em suprimir direitos e aumentar a desigualdade”, afirma Miquel Ramos

“Ainda que continuem sendo minoria na opinião pública, seus porta-vozes estão cada vez mais presentes nos meios de comunicação e algumas de suas propostas se encontram nos debates e nas decisões políticas”, adverte o trabalho.

Desde seu nascimento, a Atlas também se beneficia de fundos de um doador chave: o grupo Michelin. Jean-Claude Gruffat, único membro francês do conselho de administração da rede, é um exemplo dos vínculos entre o mundo empresarial, a extrema-direita e este influente think tank. Trabalhou por mais de 40 anos em finanças, no banco IndoSuez, depois no Citigroup e no Galileo Global Advisors, antes de terminar como diretor-geral de Weild & Co em Nova York. Este cargo lhe permitiu viajar pela Ásia, Oriente Médio, Europa e América do Norte e “construir uma grande rede de contatos em muitos países”. Fundou o Instituto das Liberdades, um dos think tanks franceses mais vinculados a Atlas Network. Atualmente, o Instituto é presidido por Charles Gave, um milionário denunciado pelo suposto financiamento ilegal de campanhas da extrema-direita.

O nexo com Milei

A Atlas Network patrocina dois dos grandes think tanks que ungiram a candidatura do presidente argentino Javier Milei: a Fundação Atlas, com escritórios em Puerto Madero, em Buenos Aires, e a Fundação Liberdade, com sede em Rosario, Santa Fé.

O negacionismo de La Libertad Avanza, o partido deste mandatário latino-americano, inclui a privatização dos recursos naturais do país, uma política que o líder ultra libertário pensa pôr em prática na segunda parte de seu mandato.

O movimento “libertário” vai um passo além e propõe, sem meias-medidas, privatizar o Mar Argentino, desta forma dando luz verde definitiva à exploração petroleira nas águas nacionais

O jornalista ambiental argentino Maico Martini revelou no ano passado o estreito vínculo entre os irmãos Koch, maiores investidores desta rede, a segunda família mais rica dos Estados Unidos, com um patrimônio estimado de 100 bilhões de dólares segundo Forbes, e Milei.

As indústrias Koch já não se dedicam só ao petróleo: diversificaram suas atividades para a química, a mineração, o papel e as finanças. “Há anos que o setor petroleiro voltou seus olhos para o Mar Argentino”, conta Martini. Durante o Governo de Mauricio Macri foi outorgado a diferentes empresas permissões para buscar jazidas petrolíferas nas águas nacionais. A administração do ex-presidente Alberto Fernández amparou a decisão de seu antecessor.

O movimento “libertário” vai um passo além e propõe, sem meias-medidas, privatizar o Mar Argentino, dando assim luz verde definitiva à exploração petrolífera nas águas nacionais. “Por que as baleias estão em extinção, ou os elefantes? A diferença é a cerca. Por que as galinhas e as vacas não se extinguem? Porque há um proprietário”, justificou em campanha o hoje deputado nacional Bertie Banegas Lynch.

Em janeiro, The Guardian publicou um artigo intitulado “O que vincula Rishi Sunak, Javier Milei e Donald Trump? A obscura rede por trás de suas políticas”. Para o jornal britânico, “Milei está tentando o que os conservadores fizeram no Reino Unido durante 45 anos”, um projeto político influenciado por uma série de think tanks neoliberais em nível global, Atlas Network, um “organismo coordenador global que promove em termos gerais o mesmo pacote político e econômico em todos os lugares onde opera”.

“Madri é hoje um epicentro desta batalha de ideias”

Guillermo Fernández Vázquez é licenciado em Sociologia, Filosofia e doutor em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madri. É um dos acadêmicos que mais pesquisou a ultradireita europeia.

Em diálogo com El Salto, afirma que é “chave enfocar a influência dos think tanks libertários na extrema-direita ocidental”. Adverte que “Milei não é um caso raro”, ao contrário. “É com Milei que avança o futuro político da extrema-direita, que passaria do modelo da década passada ligado ao Estado de bem-estar chauvinista a uma nova hegemonia ideológica que hoje os libertários estão conquistando”, analisa.

A seu ver, os dois eventos em Madrid “não são casualidade”. A capital da Espanha é hoje “um epicentro desta batalha de ideias”, o que reforça a ideia de Madri como a nova Miami, “um ponto de encontro libertário que une Europa, Estados Unidos e América Latina”.

Para este especialista, o interesse de Altas Network na Europa “vai ter efeitos sobre a tendência, a oferta e os discursos políticos da ultradireita”. “De algum modo, o aparecimento deste lobby na Europa está deixando muito obsoleta a velha fórmula vencedora da ultradireita, o estado de bem-estar chauvinista. As forças renovadas do discurso libertário e seus lobbies estão deslocando o eixo da ultradireita”.

“Com esta onda ultradireitista em nível continental, a rede terá em Bruxelas muito mais gente à sua disposição para seguir avançando em sua batalha cultural”, diz Miquel Ramos

Esta “onda ultraliberal” tem algo de “inesperado e contraintuitivo”, acrescenta Fernández. “Com a pandemia houve um consenso de que viriam modelos com Estados mais fortes e a sustentabilidade ambiental, que a pandemia matava definitivamente o neoliberalismo. O que estamos encontrando três anos depois do confinamento é justo o contrário: as ideias libertárias têm mais força do que nunca”, reflete.

O “perigo” destes lobbies, acrescenta, é “sua capacidade transversal de penetrar por meio de prêmios, bolsas e fóruns muito além das redes habituais da ultradireita tradicional”. Isto é: seus tentáculos são “muito mais eficazes” que os que até agora estavam utilizando as usinas de ideias de partidos como Vox.

A mesma reflexão faz Miquel Ramos, jornalista e pesquisador especializado em extrema-direita. Ramos explica que o avanço desta rede é “um claro perigo para a democracia”. “Estamos falando de multinacionais que investem uma grande quantidade de dinheiro para que as democracias não limitem seus lucros ainda que isto implique em suprimir direitos e aumentar a desigualdade. Um de seus êxitos é, justamente, saber mascarar muito bem suas proclamações e campanhas para que as correntes políticas e a opinião pública lhes sejam favoráveis. Isto é jogar muito sujo na democracia”, diz.

Ramos esclarece que “Atlas Network já tinha posto algumas fichas na Europa” e que sua penetração não é nova. O problema é que agora, com esta onda ultradireitista em nível continental, “a rede terá em Bruxelas muito mais gente à sua disposição para seguir avançando em sua batalha cultural”.

  • Noah Loren "Noren" OP
    link
    fedilink
    Português
    arrow-up
    1
    ·
    9 days ago

    No dia que tivermos novamente nações socialistas interessadas em investir pesadamente no setor de telecomunicação como forma de atingir o internacionalismo proletário.

    • Abzu Land@mastodon.social
      link
      fedilink
      arrow-up
      1
      ·
      9 days ago

      @NoahLoren nisso eu concordo com vc, e inclusive um dos principais motivos para a teoria de que a URSS começou a colapsar lá nos anos 1950 foi que o próprio Stalin já tinha revogado o internacionalismo proletário no fim da guerra fria, inclusive o próprio Malenkov tinha planos para promover a “coexistência pacífica” entre o Bloco Comunista e Capitalista. E Krushev fez isso mas utilizando de chauvinismo oriental.

      • Noah Loren "Noren" OP
        link
        fedilink
        Português
        arrow-up
        1
        ·
        9 days ago

        Pessoalmente discordo disso. Stalin promoveu no nível do possível o internacionalismo proletário, ele apenas fez isso muito mal. Ele foi bem sucedido em alguns aspectos, mal sucedido em outros. Claro, essa é a minha opinião baseado no que eu li e no que eu entendi.

        • Abzu Land@mastodon.social
          link
          fedilink
          arrow-up
          2
          ·
          9 days ago

          @NoahLoren eu entendo o teu ponto, sim, eu já li sobre a questão do pq Stalin não ter ajudado os comunistas gregos nem os comunistas turcos, realmente Stalin não queria arriscar uma WW3, mas também poderia ter ajudado de qq forma. E sobre a Finlândia, sim, a Finlândia meio que mudou de lado na WW2 e também capitulou parcialmente para a URSS. E a questão da Áustria foi realmente complicada mesmo, eu sei que a Cortina de Ferro foi feita pra URSS não conseguir ter vantagem mesmo.

          • Noah Loren "Noren" OP
            link
            fedilink
            Português
            arrow-up
            1
            ·
            9 days ago

            Sim, realmente, conheço essas histórias também. Mas como eu já disse antes não gosto muito de teorizar sobre o que teria acontecido se organização tal tivesse feito X ou Y. Se pessoa tal fizesse Z ou W. Mas entendo seus pontos e frustrações como internacionalista.

            Houveram situações que poderiam ter sido diferentes. Como eu estava falando antes sobre “nações socialistas que realmente invistam no internacionalismo proletário” eu não sei qual seria o impacto disso nas relações diplomáticas e econômicas. Também tenho um preconceito pessoal: as estratégias da extrema-direita não funcionam para a esquerda radical.