Antes de tudo quero dizer, quer esse texto não é um review, e nem também uma ‘explicação’ do anime, nem uma tentativa de esgotá-lo. São apenas alguns pensamentos coletados que tive enquanto via o anime e em algumas conversas (como interlocutores reais ou não xD). É apenas uma tentativa de compartilhar algumas reflexões e impressões. Haverão spoilers embora nada de forma direta, mas recomendo ler depois de ter assistido o anime mesmo assim. Pra quem não assistiu ainda recomendo muito que assistam, é um anime muito marcante e não é atoa q tem sido tao falado.

Memoria, ancestralidade e eterno retorno

 

“Você deve levar nossa memória pro futuro” disse Himel.

Frieren começa com o fim de uma jornada, mas antes de tudo, começa com uma celebração. A celebração de um ciclo que se fecha, de um dever cumprido de um futuro de paz.
Quando Frieren oferece aos seus amigos, mostrar a chuva de meteoros de uma vista melhor (em meros 50 anos), o que ela oferece é a repetição, a continuidade e a lembrança, a chance de ‘reviver’ uma ‘ultima aventura divertida’, também uma celebração. Mas ao contrario da chuva de meteoros, a vida humana não se repete, e Frieren percebe que, mesmo que ela tenha todo tempo do mundo, há coisas q não voltam.

Quando o aprendiz de Serie desafia Frieren na tentativa de deixar sua marca na historia “para que ela não fique sozinha no futuro”, Frieren mostra que Serie na verdade, se lembra de todos seu aprendizes, ela que é chamada varias vezes de “um grimório vivo” também guarda dentro de si, cada um daqueles com quem ela conviveu, mesmo que por um breve instante.

Frieren também se lembra dos seus amigos, afinal ela deveria levar sua memória pro futuro, tal qual como a do velho Voll, e o rosto esquecido de Flame, mas ela se lembra ela é como um registro vivo daquilo que passou. no entanto esse registro só pode ser mantido ao ser reescrito, refeito, seguindo os rastros que o marcam, até o mundo dos mortos.

milanos

Durante sua jornada Frieren não so preserva esse legado em sua memória, mas o mantém, visita vilas periodicamente pra resolver pendências, proteger a espada do herói, derrotar o demônio selado, mas sobretudo, limpar estatuas, muitas estatuas, algumas delas de outros heróis. Frieren também coleta os grimórios de Flame, que são todos falsificados.
no exercício ativo da memória, e na manutenção do legado, na repetição dos atos daqueles que já se foram, Frieren não só resgata uma memória nostálgica, mas cultiva uma ancestralidade, não apenas naquilo que repetimos, mas naquilo que fazemos diferente, na forma como nos transformamos através das memórias que vivemos, da forma como somos marcados por ela, como Heiter quando decide adotar uma criança órfã desamparada, pq é o que o herói faria ou Frieren quando insiste ao recrutar Sein. Como Aura lembra, o herói Himel já não esta mais entre nós, porque então moldar suas ações pelo que ele acharia? porque ouvir esse fantasma da memória que faz com que Frieren derrote os soldados da forma “menos eficiente”? “se eu viver assim, tudo que aprendi com ele, todas as memórias preciosas, tb não desapareceriam desse mundo?” (Heiter)

Viver é também cultivar a memória daqueles que nos deixaram, é dar continuidade ao seu legado, as suas ações, seus desejos, sentimentos, saberes…
Heiter não so salvou Fern, como o herói Himel faria, mas também ensinou a ela a técnica secreta de Frieren, que ele prometeu levar pra deusa. a Deusa, que eh a única q pode se lembrar de todos, mesmo aqueles que foram esquecidos, como Kraft. Na jornada para reencontrar o seu passado Frieren aprende a viver o presente e perceber que não está sozinha, que sempre há algo que foi ‘deixado’ pra ela, as estatuas dos heróis, os planos articulados de Flame, os seus novos amigos que também são fruto do passado, as tradições mágicas que ela carrega, a admiração das pessoas que nem sequer eram nascidas no tempo de sua aventura anterior, mas q ouviram as historias, e continuam a celebrar continuaram por 100 anos mais, talvez por mil. Frieren, q conhece os ciclos e as repetições do mundo, aprende que cada momento e único e que um amanhecer, pode ser mais que isso quando não estamos sozinhos.

Frieren nos mostra q a memória, não é meramente um lugar de repouso, de repetição, mas de criação do futuro, de movimento e de mudança. mesmo que nossa vida seja breve, nós humanos continuando vivendo nos corações daqueles que tocamos, nas vidas que mudamos, não pelas grandes conquistas, mas nas pequenas ações que talvez passem desapercebidas. A historia talvez não se lembre de Lerne, mas Serie se lembrará, o festival da cidade talvez não continue por mil anos, mas os atos dos heróis, já mudaram de uma vez por todas, a vida de muitas pessoas, e isso, jamais ficará pra trás, pois o mundo mudou, mesmo que um pouco.

 

O jogo da imitação

 

Após vencer o demônio que tentou embosca-la na prisão Frieren se sente obrigada a fugir, pois como ela argumenta, os demônios quando morrem se dissipam em mana, diferente dos humanos que cultivam sua memória eles não deixam rastros, logo ela não pode provar o ataque que sofreu, não ha “registro”. Os demônios imitam a fala humana, ela explica, apenas para enganar suas presas, são caçadores, também ela é uma caçadora, ela caça os caçadores e engana os enganadores. toda uma vida dedicada a uma farsa, uma farsa pra vencer outra farsa.

“Atire em mim” disse a copia falsa de Himel, criada por um demônio pelas memórias de Frieren “achei q vc diria isso”. Uma copia falsa mas fiel, tão fiel que falha enquanto copia, enquanto enganação, pois abre o caminho pra Frieren, como o herói faria.

A palavra nisemono aparece no anime pelo menos 15 vezes. Sim eu nao só contei como fiz um compilado como devem ter notado, digamos q é o meu esforço inútil (mas posso ter ‘deixado passar’ alguma). Não por acaso, Himel, dessa vez o verdadeiro, o herói que salvou o mundo, era um herói de mentira com uma espada de mentira, todos os grimórios de flame são falsos, a ponto de que se torne um mero conto de fadas mas é esse conto de fadas que orienta e arrasta toda a jornada de Frieren, sua presença é inescapável, “mesmo depois de mil anos ainda estou comendo na sua mão”. É sendo enganada por Heiter que Frieren encontra sua fiel aprendiz.

Frieren busca não só suas memórias, mas algo que escapa as memórias, ela é um registro vivo, mas o que a guia na sua jornada, em busca daquilo que a memória ‘deixa pra trás’ são as farsas, as falsificações, as estatuas (que não reproduzem a verdadeira beleza de Himel como ele diz) os mímicos (sim, os mímicos não são só uma gag gratuita, eles tem um papel na poética do anime), os clones da dungeon mas sobretudo a maior farsa de todas, a própria Frieren. Se Himel e o herói de mentira com espada de mentira que se tornou de verdade pelas suas ações, Frieren e a maga de verdade que "trai’ a magia, quem engana e se esconde, que é “uma vergonha pra todos os magos”.

O anime não separa a memória das falsificações, pois a própria memória é a falsificação daquilo que não se repete, o registro também é uma copia, uma farsa. Mas não ha aqui uma oposição entre o verdadeiro e o falso, não é que a copia não seja capaz de reproduzir fielmente algo, mas na sua fidelidade, ela trai o seu próprio propósito enquanto copia, como a cópia da tecnica de Eisen mas que nao tem o mesmo peso/força, ou os clones que sao cópias “perfeitas” mas ao mesmo tempo facilmente identificáveis como cópias, e acima de tudo, nao tem kokoro (coraçao/alma).

Frieren privilegia não a verdade, e nem mesmo a copia mais fiel, mas a copia que produz um desvio. um desvio que cria algo novo, ou nos leva pra outro caminho, nos transforma. Mesmo que o feitiço de detecção de mímico seja 99% correto, ela decide acreditar, todas as vezes, que algo único pode acontecer, que algo novo pode ser encontrado, não apesar, mas através dessa farsa. Como Heiter decide acreditar na deusa, pq “seria melhor q fosse verdade”. O filho do nobre morto não pode ser substituído por stark, o que passou nunca volta, mas o que esta em jogo aqui não eh uma negação da copia em favor de uma origem que já se perdeu, e sim a distinção entre falsificações, entre as falsificações q são apenas enganadoras e as vezes perigosas, as vezes apenas “vazias”, sem alma, sem força, cópias estéreis, e as falsificações que criam, que nos levam a novos lugares, nos inspiram, nos ensinam algo ou apenas nos dão motivo pra continuar. Aqui não ha pílula azul e pílula vermelha, não ha verdade a ser revelada, há apenas o futuro a ser criado e cabe a nós faze-lo, mesmo que seja preciso virar o mundo de ponta cabeça.

 

Você ama magia?

 

Quando Serie diz pra Frieren que ela morrerá nas mãos de um mago humano, ela descreve um futuro onde a humanidade através da magia se expandiu em seu poder a ponto de poder ‘deixa-las pra traz’. A reação de Frieren é inusitada, “veremos muitas magias diferentes e novas, mal posso esperar”. Onde Serie vê seu lugar de poder ameaçado pelo futuro, que Flame planeja construir, Frieren vê a possibilidade de coisa novas e interessante pra serem vividas, onde Serie vê a magia como um mero fim pra um meio, Frieren entende que o prazer da magia, está em procurar por ela. Por isso ela, é a maga que trará os tempos de paz, não porque ela pode superar Serie em seu poder, mas essa jovem elfa, que adora coletar feitiços bobos e vive sendo pega por mímicos, ela sim, é capaz de imaginar um mundo onde o Rei Demônio não existe mais, um mundo de paz, mas mais q tudo, um mundo a ser conhecido, a ser vivido, lembrado e transformado.

Frieren ama a magia, mesmo que tente esconder. ela aprende a lutar com Flame mas sua ultima lição, é uma magia ‘inútil’ que cria um campo de flores, a mesma magia que mil anos depois encantou Himel qnd ainda era criança. Não fosse pelas magias bobas e inúteis, jamais teria ocorrido a jornada da party pra derrotar o Rei Demônio. Pois de nada vale o poder imenso da magia, se ele não pode conectar as pessoas. Serie no fundo sabe disso. Depois de anos de luta, Frieren viaja também pra reencontrar a magia, ela talvez não perceba, mas seu encanto, que talvez ela dê como “mais ou menos” perdido, também desperta outros a sua volta, como Denken, que se recorda de porque se interessou por magia, ou Fern, que encontra um sentido e uma razão pra sorrir na alegria de sua mestra em coletar cacarecos inúteis.

Vi alguns comentários relacionando Frieren com Senhor Dos Anéis, a obra mais marcante do gênero de fantasia. Não e à toa. Senhor Dos Anéis não é só a obra mais famosa, mas ela instituiu toda uma tradição, que chamam de “alta fantasia”, que influenciou quase que desde sempre a historia dos animes e videogames de forma inescapável. Uma tradição que com o tempo se tornou um emaranhado de cópias de cópias, de obras que repetem palavras mas não produzem sentido e que se dissipam sem deixar rastros, sem criar nada. Frieren não é o anime mais 'verdadeiro, nem mesmo a cópia mais fiel. Não se preocupa em ‘imitar’ ou em substituir os clássicos, nem sequer em apenas ‘se inspirar’ mas em revisitar essa tradição, esse legado, numa jornada ao passado do gênero de fantasia, vasculhar cada canto dungeon atravessando lembranças, marcas, copias vazias, armadilhas, na busca de encontrar algo que escapa, algo que “ficou pra traz”, algo que esquecemos em meio a velocidade cada vez maior da passagem do tempo, nesse nosso mundo, na nossa “era dos homens”, na maquina utilitarista da indústria do entretenimento, algo que nos inspira, que nos torna melhores, que nos conecta, que nos da vontade de seguir, de conhecer melhor as pessoas ao nosso redor, se entregar ao preciosismo de uma tarefa inútil, de aproveitar os momentos únicos, de recriar o mundo, enfrentar desafios zelar pelo futuro, de virar o mundo de ponta cabeça de imaginar, visualizar futuros possíveis. Frieren nos trás de volta o amor a magia, esse e seu presente para nós.

Eu realmente considero Frieren um anime geracional e fico feliz de ver que ele atingiu um publico amplo, vejo muitos relatos de como esse anime mudou a vida das pessoas de formas pequenas, tal qual o herói Himel, nesse sentido Frieren como obra também deixa um legado na historia da mídia popular contemporânea, nos fazendo lembrar porque amamos magia, fantasia, animes, e como essas obras sempre nos moveram e nos inspiraram, o impacto disso só o futuro dirá, mas eu mal posso esperar pra ver.

 

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Esse texto definitivamente não é uma despedida curta xD
É um registro de algo que passou, mas permanece vivo através de nós. registro de registros(notas, lembranças conversas) de um registro (uma peça de mídia). Não e a verdade sobre o anime, nem mesmo a 'interpretação mais fiel" mas apenas uma breve jornada ridicula e divertida. Até a próxima.

 

  • JonnyMA
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    ·
    3 months ago

    amei o texto! ficou muito bem escrito, parabéns 💖
    to há um tempo vendo tu falar sobre o lance das imitações em Frieren, mas só lendo os exemplos no texto me dei conta de que realmente isso tá em todo canto no anime kkkk, to ansioso pra reassistir logo e reparar melhor nisso (e na questão da representação dos demônios que ta dando uma boa discussão também…)
    aliás, faz um crosspost com a !anime@lemmy.eco.br depois, pessoal de lá vai curtir também. Frieren feliz (por Godgeta2023)

    • belOPM
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      ·
      3 months ago

      vo fzr, valeu pow eu acho q o maior motivo pra eu escrever esses texto foi isso de como assim ninguem ta falando dessa paradadas imitaçoes kkkkkk o lance dos demonios da um longo papo tb e eu sinto q o anime tem total consciencia da etica q ele implica acho q a gente acaba tendo jugamentos apressados, eu tb tive no começo mas depois de mergulhar mto no anime vi q e mto mais complexo. tb tem muita coisa pra pensar sobre cosmotecnica q vc mencionou otro dia, a forma como o anime trata a questao da magia como ferramenta eh bem interessante