Uns dez anos atrás, quando Facebook e Twitter ainda estavam em seu auge no Brasil, um dos tipos de críticas mais comuns que se fazia às redes sociais e à Internet era direcionada às pessoas, frequentemente feita em primeira pessoa: “estamos nos tornando pessoas solitárias”, “nossas relações estão se tornando líquidas”, “as pessoas não conseguem mais ler mais do que 140 caracteres”. Por causa do conceito de modernidade líquida, Baumann era um autor bastante popular na época. Mas essas críticas, que já faziam parte de um senso comum, praticamente não mencionavam as técnicas, o meio, a estrutura que moldavam as redes sociais e a Internet. Elas se concentravam sobretudo em criticar como as pessoas usavam a Internet, quase sempre de forma inócua, apenas constatando que algo estava errado, mas sem qualquer perspectiva de mudança. “As redes sociais estão tornando nossas relações falsas? Então vamos cultivar relações reais, buscar o olho no olho, o mundo real”. A crítica não apenas parte de certos pressupostos ingênuos de um ponto de vista ontológico (essa comparação superficial de real e virtual, mas não vamos começar a falar de filosofia) como também propõe um tipo de solução que é a menos realista possível – participar ou não da Internet e das redes sociais não é uma escolha, uma vez que (já naquela época) todas as esferas da sociedade, das notícias às oportunidades de emprego, estavam convergindo pra esse ambiente.

Nos momentos de migrações em massa do Twitter para o Ferdiverso, certas discussões sempre retornam: o Fediverso precisa aproveitar essas oportunidades para crescer, mas o Fediverso precisa crescer mesmo? É isso que todo mundo quer? O aumento do número de usuários vai atrair pessoas buscando lucros e visibilidade, coachs, influencers? Isso vai afetar a dinâmica de interações que vem funcionando até agora? O ambiente pode acabar se tornando tão tóxico quanto o do Twitter?

Eu, particularmente, não desejo que o Fediverso cresça nem desejo que não cresça. Desde que exista infraestrutura pra suportar mais gente, não acho que ter mais pessoas vai necessariamente ser negativo pra experiência de quem já está aqui. Até porque as ferramentas pra manter a rede segura parecem estar funcionando bem: moderação, bloqueio de instâncias, criação de novas contas via convite. Com essas ferramentas a gente já consegue se proteger de gente muito pior do que coachs de Twitter – pois sabemos que existe toda uma ala facista e criminosa que também usa o Fediverso. Além, é claro, do controle que a gente tem sobre o que quer ver. Por outro lado não vejo porque o crescimento em si deveria ser um objetivo, a não ser que estivéssemos nos organizando como militantes.

Então acho que colocar a questão do possível crescimento do Fediverso em termos de como uma grande massa de pessoas que por acaso chegue na rede vai se comportar --se vai ter político, coach, influencer, se vão tornar o ambiente mais tóxico, etc. – é muito similar a dizer que as redes sociais estão nos tornando pessoas mais solitárias, como muita gente gostava de falar no Facebook. É colocar o problema no indivíduo de forma que ele se torna insolúvel, ao invés de focarmos no meio em si, que é onde possíveis problemas poderiam tentar ser resolvidos. É transformar um problema estrutural num problema comportamental. Não é que eu esteja propondo uma visão tecnicista de resolver tudo na base do software, mas é que tenho visto muita gente colocar a responsabilidade das pessoas tóxicas do Twitter nas pessoas em si sem considerar o quão importante é o software na construção desse ambiente tóxico.

O crescimento do Fediverso até agora, principalmente do Mastodon, já foi o bastante pra chamar a atenção. O que é bom, por um lado, por colocar uma verdadeira alternativa às redes sociais de big techs, mas por outro lado traz um desafio: não deixar que a alternativa seja engolida e destruída, que é o que as big techs sempre fazem. Quando Bluesky e Threads começam a usar o ActivityPub isso já é, por si só, um ataque e um primeiro movimento de cooptação. O caminho que o Eugênio escolheu parece ser o de aceitar a cooptação e talvez lucrar com isso no futuro. Na minha opinião, é principalmente disso que precisamos nos defender.

  • BaalInvokerA
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    3 months ago

    Baumann e a pós-modernidade foram um câncer. Autores da pós-modernidades (Baumann incluso) pautam o discurso, a retórica, se desconectando completamente da realidade. Como você mesmo apontou praticamente não mencionavam as técnicas, o meio, a estrutura que moldavam as redes sociais e a Internet. A centralização do discurso no indivíduo e a negação do ambiente no desenvolvimento comportamental e relacional das pessoas só beneficiou aqueles que souberam criar realidades paralelas, como fez o bolsonarismo.

    Quanto ao fediverso, acredito que essa preocupação seja de certa forma difícil de se concretizar devido a forma como o fediverso funciona. Não há um servidor central que estipula regras e valores arbitrários, como faz as empresas que controlam as grandes redes sociais. Cada pessoa pode criar seu próprio servidor, seja para o bem, seja para o mal.

    Isso significa que cada servidor pode optar por tolerar mais ou menos coisas, com o risco de ser apreciado ou repudiado por outros servidores. Mas isso não é muito diferente do que acontece em qualquer ambiente, seja ele virtual ou presencial. No fediverso isso significa que o controle do que é postado e visto é pulverizado e, em última instância, cabe ao usuário saber onde está pisando.

    Agora, diferentemente das grandes redes, no fediverso os moderadores e administradores não estão sendo pagos ou recebem qualquer incentivo para agir de maneira X ou Y. Isso significa que, a depender do servidor que você faz parte, a moderação poderá ser mais exigente ou mais tolerante. Portanto o crescimento de comportamentos tóxicos podem ser rechaçados muito mais rápida e ferozmente no fediverso.

    Por outro lado, caso uma pessoa se sinta oprimida, ela também poderá criar seu próprio servidor e administrar como quiser, optando por sofrer as consequências dessas ações.

    Mas é claro, é sempre importante frisar isso que você falou, o comportamento tóxico não é causado por redes sociais, mas sim pelas pessoas que alimentam essa rede. Claro que também não podemos negar que as redes sociais, com seus algorítmos, reforça esses traços já pré-existentes (porque engaja mais e dá mais lucro). E essa é uma das maiores diferenças no fediverso, pois não há algorítimo que faça isso e, geralmente, não há busca pelo lucro.

    não deixar que a alternativa seja engolida e destruída, que é o que as big techs sempre fazem. Quando Bluesky e Threads começam a usar o ActivityPub isso já é, por si só, um ataque e um primeiro movimento de cooptação.

    Quanto a isso, não acho que essa cooptação acontecerá. O fediverso é muito pulverizado e cada servidor tem autonomia. Quando as grandes redes começarem a usar o ActivityPub, isso certamente poderá trazer mais pessoas ao fediverso, assim como também gerará uma reação dos servidores em relação à toxicidade e ausência de moderação que virá junto. Aquele servidor de grande empresa que permitir comportamentos disfuncionais, rapidamente será isolada do fediverso, pois os outros servidores naturalmente o bloquearão. Por outro lado, aquela grande rede que se comprometer em criar um ambiente seguro, poderá ser melhor aceito no fediverso e, portanto, conectar mais as pessoas

    Mas isso tudo é hipotético, afinal só saberemos como vai funcionar, quando começar a funcionar. Mas uma coisa é certa, os próprios desenvolvedores do protocolo ActivityPub e das redes federadas também vão reagir ao movimento das big techs. A tecnologia sempre está em movimento e sempre vai haver alguém para se contrapor a uma ideia e garantir a manutenção de uma alternativa. Um ótimo exemplo disso é, dentro da comunidade Linux, a revolta contra o SystemD e a manutenção de uma alternativa sem ele.