Os dicionários gerais da língua portuguesa (Houaiss e Aurélio, por exemplo) dão como obscura a origem do verbo enxergar. Há algum indício (ainda que de etimologia popular) para formação deste verbo?

Vicente Martins Professor universitário Sobral, Brasil 5K

Sobre a etimologia de enxergar, parece que, por enquanto, pouco mais se pode adiantar ao que é dito no Dicionário Houaiss, ou seja, que há quem pretenda que enxergar deriva ou é a conversão de enxerga, «colchão», do latim serica, sericorum, «estofo, tecido ou veste de seda». Contudo, reconheça-se que é difícil explicar como pode o significado de tal palavra prestar-se a desenvolver os valores referentes à perceção que hoje se associam a enxergar.* Cite-se o comentário de José Pedro Machado no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (mantém-se a ortografia do original, anterior à de 1990):

«Não está bem demonstrada a relacionação enxerga > enxergar, admitida por alguns, entre os quais [Antenor] Nasc[entes] [Dicionário Etimológico]-1, s. v.; em 1943, Leo Spitzer também a aceitou (Hispanic Review, pp. 216-218), apenas pondo dificuldades à solução semântica do dicionarista brasileiro (“O sentido faz dificuldade; tratar-se-ia de alguma fazenda transparente de seda, através da qual se enxergasse? O esp[anhol] tem enjergar, que significa “principiar e dirigir um negócio”). Spitzer daria razão ao étimo apontado por Nascentes, mas a evolução semântica deve ter sido outra; depois de se referir à acepção galega “endilgar; dirigir un asunto malamente, ensartar un discurso o escrito sin orden ni concierta; divisar, ver de lejos”) e de aludir a passos de Os Lusíadas (IX, 68 e 62). O verbo apareceu (emerged) sem dúvida em áreas rurais; cita as acepções registadas por Cândido de Figueiredo. O pref. en- de enxerga é um problema; lat. serica > esp. serga (cf. francês serge, sarge), forma só preservada no título de Montalvo “Las sergas de Esplandián”. O espanhol enjerga = regressivo de *enjergar, “poner en jerga”, “haver começado e não ter acabado”. Oudin tem xerga, “charrier à lessive”, portanto, “poner en jerga”, “enxergar”, “empilhar a roupa na barrela para corar”. Assim se explica o significado “sem ordem, mal arrumado”; para o de “começar”, cf. Französisches Etymologisches Wörterbuch, s.v. bukon”; para o de “ver” (vagamente), pensaremos na infiltração necessária: a actividade da percepção compara-se a “colarse poco a poco”. A própria linguagem popular, a menos que exprima a passividade de quem vê (fr. ant. m’est a vis = parece-me = vejo) está, quase sempre, apta a acentuar a intervenção do espírito humano e a elaboração do que é “visto”. Cf.: francês antigo choisir = aperceber-se < al. *kausjan; cf. também küren, kiesen, “escolher”. Exacta analogia de enxergar, “to sift” < “to see”, é o latim cernere, “trier, passer au crible”… “distinguer”… “voir” (Ernout-Meillet). Cf.: italiano sceverave, scorgere; lugodorês sebestrare; alemão sehen = latim sequi; português divisar; francês deviser. Em 1945, Joaquim da Silveira (na Revista Portuguesa VIII, p. 86) propôs outra hipótese, que parece inaceitável; "do lat. vulgar *exsericare, frequentativo em -icare do lat. exserere e com o mesmo sentido de exsertare, outro frequentativo do mesmo verbo, isto é, “mostrar, patentear, descobrir”. Séc. XV: “… avya huũ rryo que soya d’aver nome Arrary…, o qual era tam allto e cheo d’augua que malaves podia homẽ ‘enxergar’ pera quall part corrya”, César, pp. 45-46; antes, séc. XIV, a variante eixergar: “como quer que ouvesse o ssopro muy somido e que adur se ‘eyxergava’”, cit. na Revista Lusitana, XXVII, p. 31.»

O problema da etimologia de enxergar reside, portanto, na dificuldade em traçar a evolução semântica que conduziu ao atual significado do verbo, que é praticamente sinónimo de ver. Observe-se igualmente que não se afiguram claras as razões por que Machado não aceita a proposta de Joaquim da Silveira, a qual permite não só definir regularmente a relação morfológica e fonética de enxergar com exserere, como também dar congruência ao significado do verbo.

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A etimologia proposta por J. Coromines e J. A. Pascual (Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, versão eletrónica, 2012) não é esclarecedora quanto à hipótese de enxergar constituir um derivado de enxerga, acompanhado de uma extensão semântica: «Gallego dexergar ‘descubrir con la vista’, ‘ver, percibir’ (Valladares), ‘contemplar curiosamente’ 3, gallego central desargar ‘descubrir mirando’ (en Lalín: Crespo Pozo), también secundariamente gallego común enxergar ‘atisbar’ (Crespo Pozo) 4, portugués enxergar ‘divisar, entrever, observar’ [1535, Eufrosina, etc.], y esta variante ya no es reciente tampoco en Galicia: “parece que inda enxergo / por entre ramalleiras / travesos estudiantes / correr e estralouzar.” Añón, Poesías…; el proceso semántico de desxergar ‘quitar las jergas que cubren una cosa’ > ‘contemplarla’, cf. el português descortinar ‘avistar, descubrir a lo lejos’ (os mareantes descortinaram a terra). Palabras que nos recuerdan la situación angustiosa del navegante trasatlántico tratando de descubrir lo que se oculta tras un horizonte de celajes tormentosos.»

Fonte: Ciberdúvidas da Língua Portuguesa